segunda-feira, 26 de maio de 2014

A qualidade do objetivo: como qualificar os números?

Pode parecer pouco, mas acredito que se dispor à disputa deste debate é o

 primeiro e mais indispensável passo para estabelecer a função social da educação.


Rafael Barros
Carrie Antal/USAID
 

No meu último texto, A produtividade no ensino: avaliar ou contar? , tratei do tema da avaliação educacional em sentido amplo e procurei estabelecer dois pontos principais: 1. a educação cumpre uma função social; 2. realizar uma crítica simplesmente negativa dos sistemas de avaliação disponíveis, sem apresentar alternativa, pouco acrescenta ao debate e se trata de uma postura que, na minha opinião, deve ser abandonada. Quanto à crítica exclusivamente negativa, escrevi: "O que cobro e sugiro é renunciarmos à negação total e somarmos critérios, na tentativa de dar um pequeno passo à frente. Penso que é necessário manter a base quantitativa, mas qualifica-la com critérios qualitativos." Este é o ponto que quero desenvolver aqui: o que significa qualificar a base quantitativa? Como fazê-lo? Dividirei o texto em duas partes: na primeira, apontarei o quanto de qualificação (para alguns, subjetivismo) já existe na atual estrutura de avaliação - que aparece como exclusivamente quantitativa (para alguns, objetiva); na segunda, registrarei algumas sugestões de mudança que me parecem desejáveis.
 
1. O que vemos nos relatórios de avaliação do ensino, do nível básico à pós-graduação, são quase que exclusivamente números. De conceitos CAPES a notas do Enem, passando por Ranking Shanghai e Prova Brasil, os competidores (?) são listados de acordo com o número que lhes toca, e este número é desdobrado em outros, resultados parciais de cada um dos critérios de avaliação que compõem a nota final. Interessa-me, nisso tudo, o que não aparece: como os critérios são decididos e o peso que se atribui a cada um deles na participação proporcional do resultado. Em primeiro lugar, o que contaremos? Apenas notas de Português e Matemática? Dentro de Português, haverá avaliação do grau de familiaridade com a tradição literária (nacional, internacional lusófona, internacional geral?) ou só nos preocuparemos com o grau de domínio das habilidades linguísticas de base? Haverá prova de redação? Ela será obrigatória ou facultativa aos candidatos? No nível superior: palestras e conferências contam? Número de cursos ministrados à graduação e à pós? Resumos em anais de congressos ou só se forem expandidos? Capítulos, livros, volumes, verbetes? Livros maiores contam mais?
 
A lista continua a perder de vista e em todos os casos o ponto é o mesmo: cada uma das respostas (qualquer que seja a alternativa escolhida) é apoiada por razões e justificativas, não causas mecânicas. Escolher uma ou outra depende da, e a reflete, concepção mais geral de ensino que orienta as pessoas e os órgãos responsáveis pela avaliação educacional. Um exemplo banal: uma escola ou curso universitário que exige carga horária de aulas maior deve ser melhor ou pior avaliada? Depende. Sempre - e isso não quer dizer que não haja nenhuma resposta "certa", apenas que esta não é automática, definitiva nem excludente das demais.
 
Em publicações acadêmicas, o próprio mecanismo de "peer review" e outros procedimentos editoriais de seleção representam formas de introduzir critérios de qualidade antes da geração do resultado quantitativo. Em outras palavras, o número que nos aparece no final como soberano solitário e absolutamente objetivo percorreu um caminho permeado de "subjetivismos" - um caminho que, nem por isso, é desqualificado pelos supostos adeptos do "objetivismo puro". 
 
2. Mantendo-me coerente com a postura que já havia antecipado no texto anterior e retomado no início deste, penso que dois movimentos devem ser realizados para melhorar sistemas de avaliação educacional. Por um lado, apoio o contínuo experimentalismo e variação dos mecanismos já existentes de inserção de critérios de qualidade, que sempre devem ser reavaliados face às limitações que revelam no decorrer dos anos. Exemplifico: após escândalos de publicações falsárias, grandes revistas científicas se veem compelidas a rever suas políticas editoriais; o SAT passa por reformulações estruturais, o mesmo aconteceu e acontece com ENEM, ENADE e outras formas de avaliação (nacionais e internacionais, como o Pisa); revistas acadêmicas escandinavas vêm aplicando um sistema diferente de "blind peer review", no qual os pareceristas assinam suas avaliações, de forma a aumentar as réplicas e o comprometimento dos mesmos no julgamento de artigos e mantendo o caráter cego apenas do lado dos autores, omitindo o nome dos mesmos. Por outro lado - e mais urgente e relevante, na minha opinião -, é necessário promover um debate público aberto sobre o assunto. Em primeiro lugar, é preciso abandonar a máscara da "pura quantificação" e da "pura objetividade". Uma vez assumida a presença inevitável (e desejável!) de critérios qualitativos, como apontei no item 1, resta-nos escancarar as escolhas e prioridades envolvidas na constituição e no peso desses critérios, para que se possa desenhar um sistema que seja, se não perfeito (o que é impossível), ao menos coerente com a concepção de educação que ele reflete (o que já seria grande coisa). Trata-se de discutir amplamente o sentido e o valor de "internacionalização", "tempo de escolaridade", "proporção de professores por número de alunos", "abrangência do programa" e outros critérios à luz da multiplicidade de tarefas a serem cumpridas em diferentes países e por diferentes instituições. Exemplifico novamente: faz sentido cobrar das universidades públicas brasileiras a mesma proporção professor-aluno de universidades privadas e centros de pesquisa americanos demograficamente menores? Como fica a missão de formar contingentes treinados para um país de 200 milhões de habitantes que ainda carece cronicamente de ensino superior? (Formação de contingentes também assumida, por sinal, pelas universidades públicas francesas, alemãs e italianas). Somente uma exposição clara das escolhas em jogo poderia fazer avançar esse debate e melhorar a avaliação. 
 
Em suma, o que defendi aqui foram dois pontos gerais: em primeiro lugar, todo sistema de avaliação educacional já envolve análises qualitativas, não importa o quão quantitativo ele aparente ser; em segundo lugar, somente um debate amplo, aberto e livre de pretensões infundadas de neutralidade e naturalidade poderá permitir o aperfeiçoamento contínuo e sempre necessário dos diversos mecanismos de avaliação. À primeira vista, pode parecer pouco, mas acredito que assumir firmemente o que está em questão e dispor-se à disputa é o primeiro e mais indispensável passo a ser dado.
 
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Rafael Barros é formado em Direito pela São Francisco/USP e está no segundo ano de Filosofia na FFLCH/USP

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