segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

PCC: “Paz entre os ladrões”

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PCC: “Paz entre os ladrões”
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Em entrevista à CH, a antropóloga Karina Biondi analisa esse fenômeno social complexo, o
Primeiro Comando da Capital, que proibiu nas prisões o craque, a agressão, o estupro, as
mortes sem autorização, o porte de facas e até palavrões.

Cássio Leite Vieira

PCC: “Paz entre os ladrões”

No ano em que completa o 10º aniversário de sua hegemonia nas prisões paulistas – com influência em torno de 90% das cerca de 150 delas –, o PCC lançou a ameaça de uma ‘Copa do mundo do terror’
Este ano, quando completa o 10º aniversário de sua hegemonia nas prisões paulistas – estima-se que hoje tenha influência em torno de 90% das cerca de 150 delas – e de sua refundação, quando acrescentou o ‘Igualdade’ ao lema ‘Paz, Justiça e Liberdade’, o PCC (Primeiro Comando da Capital) lançou a ameaça de uma ‘Copa do mundo do terror’, caso seus membros sejam transferidos para o isolamento, como prometem as autoridades de segurança em retaliação a um suposto plano para matar o governador Geraldo Alckmin.
CH entrevistou a antropóloga Karina Biondi, da Universidade Federal de São Carlos, para entender esse fenômeno social complexo, que proibiu nas prisões o craque, a agressão, o estupro, as mortes sem autorização, o porte de facas e até palavrões. Autora de Junto e misturado: uma etnografia do PCC (São Paulo: editora Terceiro Nome, 2010), Biondi há anos pesquisa o assunto, que lhe surgiu como tema de mestrado e doutorado depois da prisão do marido – inocentado, após quase seis anos aguardando julgamento –, quando passou a visitar prisões paulistas.

Karina Biondi
Ciência Hoje: Parece difícil definir o PCC. Usa-se facção, grupo, associação, coletivo etc. Como a senhora o definiria?
Biondi: Realmente, é difícil oferecer algo que pudesse fornecer uma moldura a um fenômeno tão complexo. Já o caracterizei como um coletivo, quando tomei de empréstimo esse conceito de outro autor, para me desvencilhar da ideia de ‘crime organizado’. Mas a melhor definição é a que os próprios integrantes oferecem: o PCC é um movimento. E isso quer dizer que não obedece a limites espaciais, que não adquire formas definidas. Toda a terminologia usada por seus integrantes remete a essa definição: quando alguém (geralmente um ‘correria’) ingressa no PCC, diz-se que ‘entrou para a caminhada’; as diferenças que o PCC expressa são denominadas ‘ritmo’; quando se pretende alcançar um objetivo, procura-se ‘levar a ideia adiante’.
De fato, em minha pesquisa, deparei-me com um PCC que não se restringia ao conjunto de seus integrantes, que estava presente mesmo onde não havia nenhum membro e que se apresentava de formas variadas a depender do ponto de vista adotado. É possível dizer que não existe um, mas vários PCCs possíveis e que só se efetuam na medida em que acontecem. Por isso, em vez de definir ou pressupor o PCC como força exterior que molda os indivíduos que a integram, passei a me esforçar para descrever como esse movimento acontece, como sua existência é alimentada pelas relações mais sutis, cotidianas, triviais.

O PCC foi fundado em meados da década de 1990. Há uma década, depois de enfrentar facções, obteve sua hegemonia nas prisões paulistas. O que levou a população carcerária a aderir majoritariamente ao PCC?
O índice de mortes nas prisões era bastante elevado quando do surgimento do PCC, cuja expansão não se deu sem muito derramamento de sangue
O índice de mortes nas prisões era bastante elevado quando do surgimento do PCC, cuja expansão não se deu sem muito derramamento de sangue. Mas, à época, o PCC era apenas um dos vários agrupamentos que disputavam espaço nos estabelecimentos penais, e a força física não era um diferencial seu. Como se diz, era uma época do ‘cada um por si’, em que ‘vencia o mais forte’. 
Nessa situação, aliada à força física – o que os presos chamam ‘disposição’ –, as ideias que propagavam eram muito sedutoras: estabelecer tanto a ‘paz entre os ladrões’ – para dar fim às extorsões, à violência sexual, exploração e às mortes por banalidades comuns no ambiente prisional – quanto a ‘guerra contra a polícia’ – cujo objetivo principal seria lutar contra o que os presos chamam ‘opressão carcerária’.

A senhora diria que a ‘paz entre os ladrões’ foi fruto de um ou mais fundadores que perceberam que as energias, forças e vontades da população carcerária – então, em situação caótica, na base do ‘cada um por si, que vença o mais forte’ – poderiam ser canalizadas contra um inimigo comum: o Estado e sua polícia?
Mais do que ser fruto dos fundadores, é efeito de uma série de acontecimentos: as repercussões do massacre do Carandiru; o crescimento vertiginoso da população carcerária no estado de São Paulo; a transferência desse enorme contingente para longe dos olhos da maioria da população paulista; o recrudescimento das práticas penais – cujo ponto alto foi, posteriormente, a criação do Regime Disciplinar Diferenciado. 
O sucesso da ideia de ‘paz entre os ladrões’, por sua vez, não pode ser dissociada das reações do Estado – como transferências e isolamento dos que eram considerados líderes – e do que, na antropologia, costumamos chamar ‘política do cotidiano’ ou ‘pequena política’, ou seja, as mais triviais relações travadas cotidianamente. Foram elas as determinantes para a atual dinâmica do PCC.

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