sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

"Para chegarmos a uma sociedade justa há que destruir o capitalismo"


Com este sistema não vamos a lado nenhum, e é impossível humanizá-lo

Diário Liberdade
251213 miren
O que está passando é que se está desumanizando ainda mais. Tem que ser um sistema que não é o capitalista, e tem que ser a partir de umas premissas totalmente diferentes, procurando o bem comum e a felicidade das pessoas, em lugar do lucro de uns poucos.
- O capitalismo necessita crises cíclicas para superar as suas contradições. Quando esta última crise aparece, primeiro no âmbito financeiro, mas traspassando-a automaticamente para todos níveis, tem algo que a faça especial, ou é uma crise mais? Supõe um ponto de inflexão?
Não é um ponto de inflexão no sistema. Eu acho que é uma crise mais do capitalismo, umas são mais intensas e outras menos. Esta é bastante intensa, mas não acho que vá supor uma transformação do capitalismo, não vejo o ponto de inflexão.
- Vivemos um processo de atomização no Estado espanhol, a partir da década de 80 há um processo de deslocalização para os países subdesenvolvidos, e com o auge do Estado Providência desde os anos 50. Isto supôs um aumento da terceirização da produção, com aumento da conhecida como classe média - O que define a classe média como tal?
É uma distinção extremamente artificial. A diferença fundamental é que a classe média tem uns salários mais altos e as classes populares mais baixos. Geralmente, a classe média tem um nível de formação superior que lhe permite aceder a postos mais altos, mas no fundo da questão trabalhadores assalariados são uns como outros, com a diferença de que uns recebem mais. Essencialmente, não há diferença, só de nível enquanto as coisas vão bem.Cáritas (entidade de beneficência católica) está dizendo que cada vez ajudam mais pessoas de classe média. Quer dizer, que se uma pessoa de classe média fica sem salário também não pode sobreviver. Os que não são proprietários do capital e vendem a sua força de trabalho, essencialmente tanto faz o nível do seu salário. Não é exatamente o mesmo, mas no esquema da produção não tem diferença.
- Postulas uma via alternativa para sair da crise, e mesmo do capitalismo. Por onde há que caminhar e como?
Há que distinguir duas coisas. Uma é sair da crise, voltar a recuperar um nível de atividade económica, e outra é sair do sistema. Enquanto tivermos capitalismo, sempre teremos crises recorrentes. Talvez até possamos sair desta, mas teremos outras. Como se sai desta crise? Vai ser enormemente complicado para estados como o espanhol, porque não tem uma capacidade produtiva forte, além disso, tem-se debilitado progressivamente. Quando há pessoas que pensam na recuperação, deveriam pensar que a recuperação não vai ser recuperar o ano 2005 ou 2006. Os salários que se estão perdendo, o estado providência que se esta destruindo ou a precariedade laboral provoca que estejamos muito por baixo, e vai supor que quando a recuperação comeár será para níveis muito inferiores.
Há que fazer uma diferenciação importante, a sociedade não é feita de um bloco homogêneo, tem classes sociais. Agora, quando os nossos dirigentes políticos e alguns empresários estão a dizer que nos estamos recuperando, estão-se recuperando eles, quando recuperam a taxa de lucro. Precisamente porque estão deteriorando a situação dos trabalhadores, das classes médias e das classes populares. Então, estão melhorando eles e podem falar de recuperação, mas ao mesmo tempo vêem-se obrigados a dizer que o emprego não melhorará, do mesmo modo que o Estado Providência. Ao falarem de recuperação, há que perguntar-lhes: "a recuperação de quem?"
Uma coisa é sair da crise, que se irão sucedendo enquanto houver capitalismo. Acho que para chegar a uma sociedade satisfatória, justa, harmónica ou atrativa, há que destruir o capitalismo. Um capitalismo verde, ou com rosto humano, não se pode dar.
- No modelo zapatista, criava o seu próprio modelo fora do capistalismo, dentro do próprio Estado. No nosso caso, se quisermos tomar o poder, neste momento, é impossível. Se não quisermos, descartamos a via. Para ambas as opções, que nos pode trazer esse modelo?
O modelo zapatista não está conseguindo grande coisa no México, não podemos enganar-nos. Mas sim que está marcando um modo de fazer diferente. A minha formulação, e do grupo em que eu trabalho, é que cada qual deve construir âmbitos de autonomia, lutando por transformar esta sociedade onde pode. Um jornalista pode tentar conseguir um âmbito de autonomia dentro de verdadeira imprensa, mas não que mude o sistema financeiro. Cada pessoa deve trabalhar onde puder, criando o seu âmbito.
- Socializamos as perdas dos bancos, mas poderíamos tê-los deixado falir? nacionalizá-los? Há países que o fizeram, como a Islândia ou o Chipre.
Não são capaz de ver uma solução para os bancos. Pessoalmente acho que deixaria falir muitos no Estado espanhol, e de fato deixaram falir 42 caixas de poupança. Que os bancos não podem falir é mentira. Quando esses bancos e caixas foram atraentes para os grandes bancos fizeram-no.
Uma coisa é salvar o sistema financeiro e outra salvar os proprietários do sistema financeiro. O que o Estado fez foi, com a escusa de salvar o sistema, salvar os proprietários. Aí é onde há uma divergência importante da qual devemos estar conscientes, quando podemos salvar o sistema financeiro sem ter que salvar os proprietários. Aqui vimos que fizeram todo o contrário. Tinham que se ter feito outras coisas, mas não esqueçamos que estamos no capitalismo.
- Uma opção poderia ser criar uma Banca pública?
A Banca Pública dá-me muito medo porque depende de quem puseres à frente. O Banco de Espanha é uma banca pública, e no Estado espanhol o senhor Miguel Ángel Fernández Ordóñez, governador do Banco de Espanha, foi um dos máximos potencializadores de uma política antipopular.
Uma Banca Pública requer um Estado diferente. Por ela só, não implica nada. Argentaria era pública e só tinha umas pequenas diferenças em que tinha um pouco de política social, nada mais. No capitalismo, os apanhos pouco a pouco quase não são eficientes.
- Só uma pequena parte da dívida do Estado provém das famílias. É legítimo pagá-la?
Há que distinguir entre a dívida pública e a dívida privada. A dívida pública, baixa nos últimos anos, subiu pelo apoio que se deu às grandes empresas e que não se deu às famílias. O problema da dívida pública do Estado espanhol, até há muito pouco, não era um problema da parte pública, era um problema da dívida privada, dos bancos e das grandes empresas.
Já antes da crise, o Estado espanhol tinha um défice de comércio exterior muito alto, que se tinha que financiar. Isso foi um desastre dos economistas e dos políticos desse momento, por não atenderem a um problema evidente, porque havia 10% de dívida cada ano da balança comercial. Se a isso se acrescenta a dívida dos bancos que saíram ao exterior para pedirem empréstimos para fazer mais hipotecas no interior, não para as famílias, mas para os grandes construtores e para as grandes imobiliárias, menos para as grandes empresas e poucas para as famílias.
Aí está o problema grave, que no capitalismo se consegue uma traslação da dívida privada à dívida pública.
- Uma auditoría funcionaria?
A auditoría poria de relevo as coisas. Uma vez feita, estaria mais claro a injustiça de uma grande parte dessa dívida que haveria que repudiar. De resto, não nos vai ficar mais remédio, só o pagamento dos juros significa mais que o subsídio de desemprego. Uma recuperação económica sem o rejeitamento da dívida vai ser muito muito difícil, por muito que baixar a prima de risco.
- Para o Estado espanhol, seria mais conveniente seguir na União Européia ou abandoná-la?
É um tema complicado. Desde que entrou na União Européia, o Estado espanhol sofreu um processo de desindustrialização muito importante e nestes últimos anos as políticas económicas são as causantes do aumento de dívida, a precariedade salarial. A UE está prejudicando e desde a crise ainda mais. Isso há que dizê-lo em voz alta.
É a saída da União Europeia uma solução? É possível que sim, eu não tenho uma solução clara. Primeiro, nós não temos capacidade para decidir sair da UE, serão outros que decidam. Segundo, num mundo globalizado, sair da UE vai supor fazer uma política económica alternativa? Se os povos que sustentam o Estado espanhol estão apoiando os seus dirigentes, para aceitarem as consequências de uma saída da UE, essa saída pode ser interessante, mas se o que se quer é sair da UE sem que incomode, então pode ser dificil.
Sair da UE é um tsunami importante. Pode ser mais facil repudiar a dívida, que há que fazê-lo antes que sair, porque seguindo com a dívida em euros, fica-se pior que antes. Mas sim fizer falta sair da UE, sai-se.
- Que modelo propugnas de democracia económica? Para criar capital social, que ferramentas podemos utilizar? Parcipando no Estado, em cooperativas, etc?
Eu acho que não há um modelo, e que não deve de fazer. Esse modelo deve-se de ir construindo de baixo para cima, de acordo com os agentes sociais, em cada momento, respondendo às necessidades coletivas, consoante uma série de princípios. Um modelo feito e fechado seria erróneo. A sociedade está mudando tão rapidamente que coisas que valiam há 6 meses já não valem. O que sim propomos é que, primeiro, no capitalismo não se pode ter esse modelo, tem que ser um modelo anticapitalista; segundo, com propriedade privada não se pode conseguir nada do que queremos numa sociedade alternativa; então não pode haver propriedade privada, tem que ser comunitária, gerida pelo conjunto da sociedade e não por técnicos; e para concluir, com valores transformados, não de dinheiro e de bem-estar material só, mas de sistemas harmónicos, de justiça, colaboração, de construir uma coisa entre todos juntos, mas satisfatória para todos.
Deveria haver um sistema planificado socialmente, segundo a sociedade. Com este sistema não vamos a lado nenhum, e é impossível humanizá-lo. O que está passando é que se está desumanizando ainda mais. Tem que ser um sistema que não é o capitalista, e tem que ser baixo umas premisas totalmente diferentes, buscando o bem comum e a felicidade das pessoas em lugar do lucro de uns poucos.

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