segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

As manifestações e a luta por outro modelo de democracia. Luciano Gallas

“Os novos descontentes do mundo perceberam que o capitalismo é profundamente destrutivo, ainda que
 tenham percebido isso intuitivamente”, afirma o cientista social Ricardo Antunes

“O parlamento não está nas mãos do povo, o Poder Executivo não está nas mãos do povo, o Poder Judiciário não está nas mãos do povo, de tal modo que estas manifestações intuitivas, embrionariamente, espontaneamente, estão dizendo que querem mais democracia direta, mais assembleias populares, maior representação direta”, afirma o professor Ricardo Antunes. Para ele, a democracia direta “é o oposto desta democracia formal [atual], a qual, se permite liberdade de manifestações, ainda que restritas, é ao mesmo tempo profundamente antidemocrática no que diz respeito a uma autêntica participação popular, que só ocorre efetivamente quando é inspirada em uma democracia mais direta”.
Nesta entrevista, concedida à IHU On-Line por telefone, Ricardo Antunes identifica nos jovens estudantes trabalhadores, ou trabalhadores estudantes, o principal polo de organização das manifestações de junho de 2013 no Brasil. “Estes são os novos descontentes do mundo, os quais perceberam que o capitalismo é profundamente destrutivo, ainda que tenham percebido isso intuitivamente: o transporte não funciona, a saúde não funciona, e assim por diante, entre tantos problemas que apareciam nas manifestações, manifestações estas que é preciso estudar e que é preciso compreender”, destaca o docente. Ele enfatiza também que, se as manifestações de outubro tornaram-se mais violentas, é “porque há a violência policial e há a violência da sociedade. Alguns destes grupos [de jovens] entendem que não há mais alternativas para responder a esta sociedade violenta. Eu imagino, porque não há ainda muitos estudos sobre isso, que a maior parte dos jovens que estão nos Black Blocs não são filhos da classe média alta, mas são jovens da periferia, que vivem a violência cotidiana na sua porta, no seu bairro, na sua rua, através da polícia que reprime”.
Ricardo Antunes possui mestrado e doutorado em Ciências Sociais, respectivamente pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e pela Universidade de São Paulo - USP. Realizou pós-doutorado na University of Sussex, no Reino Unido, e obteve o título de Livre Docência pela Unicamp, onde atualmente é professor titular de Sociologia. É organizador de Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil (São Paulo: Boitempo Editorial, 2006) e de Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil Vol. II (São Paulo: Boitempo Editorial, 2013), e autor, entre outras obras, de O continente do labor (São Paulo: Boitempo Editorial, 2011), Adeus ao trabalho?: ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade no mundo do trabalho (São Paulo: Cortez, 2010), Os Sentidos do Trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho (São Paulo: Boitempo Editorial, 1999) - a última, publicada nos Estados Unidos, Inglaterra/Holanda, Itália, Argentina, Venezuela e Colômbia.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como as manifestações de junho/julho no Brasil podem ser interpretadas no contexto da luta de classes?
Ricardo Antunes - Em várias dimensões, desde que eu tenha uma noção ampla de luta de classes e que eu compreenda também que as manifestações tiveram dentro delas um caráter policlassista. Mas estas manifestações têm uma conexão com o trabalho. Em termos gerais, é possível dizer, pelo menos no que se refere às grandes manifestações que ocorreram nas capitais — São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Salvador, Recife, Vitória e tantas outras —, que o polo social predominante era composto pelo estudante que trabalha ou pelo trabalhador que estuda. É aquele jovem estudante/trabalhador ou jovem trabalhador/estudante que trabalha no setor de serviços urbanos e que sai de madrugada de casa, pega trem, porque mora na periferia, depois pega metrô, depois pega ônibus... Ele vai trabalhar durante o dia e, ao terminar seu trabalho, o salário permite que ele pague uma faculdade privada, entre tantas faculdades de massa que muito cobram e pouco oferecem.
Estes jovens dependem, digamos vitalmente, das condições de vida urbanas que estão tão degradadas. Nós sabemos que o transporte público foi privatizado, que a saúde pública está degradada e que resta a alternativa dos convênios para grande parte da população, porque o SUS, embora seja um projeto importante, enfrenta escassez de recursos comparativamente com o que deveria ter. Se o país desse atenção central à saúde, o SUS não estaria degradado, a previdência em geral não estaria degradada. Então essas manifestações de massa questionaram essa comoditização, que é uma expressão que começa a estar presente em diversas partes do mundo — vem de commodities, é a mercantilização da res publica . Estas manifestações, a partir de um dado momento, em que elas se tornaram manifestações de massa, passaram a ter um caráter policlassista, reunindo também estudantes universitários que não trabalham, estudantes secundaristas que não trabalham, e pais, mães, amigos dos estudantes.
Quando começou a brutal repressão da polícia, as manifestações deixaram de ser de três, quatro, cinco, dez mil, para ser de 100, 200, 300 mil manifestantes. A partir deste momento, houve um alargamento da base social das manifestações. Porém, e isso é vital, estas manifestações encontraram o seu principal polo social neste novo proletariado urbano, neste novo proletariado não industrial de serviços, que atua nos fast foods, no comércio, nos call centers, nesta ampla gama de atividades que foram mercadorizadas, privatizadas e que exigem a presença de um jovem trabalhador, onde a rotatividade é alta, onde os salários são baixos. Isso que grotescamente o governo e seus ideólogos chamaram de classe média, e que não é classe média, é o trabalhador que ganha mil, mil e poucos reais, que paga 200 reais, 300 reais para uma faculdade privada e que, mesmo quando tem algum desconto, algum benefício — como o ProUni , por exemplo —, paga caríssimo por um transporte coletivo.
Levante contra o sistema
Esta população manifestou seu desagravo, o seu descontentamento, a sua rebeldia, contra o sistema destrutivo que domina a vida nas cidades. É neste sentido um levante que transcende a classe trabalhadora, porque reúne contingentes das camadas médias, dos estudantes, das pequenas burguesias urbanas. Entretanto, embora ele transcenda a classe trabalhadora, ela foi predominante [nas manifestações]. Há várias pesquisas feitas que mostram que algo em torno de 70% do contingente que lá estava marcando presença era formado por trabalhadores destes setores que eu citei. Ou seja, eram jovens que trabalham. De tal modo que estas manifestações não passaram ao largo da classe trabalhadora. Outra coisa: a classe trabalhadora, digamos assim, mais tradicional, aquela que está na fábrica metalúrgica, na fábrica química, no ramo têxtil, nos bancos, naturalmente não podia sair do trabalho, parar, fazer uma greve para participar de uma manifestação de rua favorável ao passe livre.
Quem acompanha a vida social do país vê que, depois de junho, nós já tivemos greves muito importantes no Brasil, como a dos professores públicos — aliás, estes estavam muito presentes nas manifestações —, os quais vivem uma brutal degradação das condições de ensino, uma brutal degradação das condições de trabalho e de salário, uma brutal degradação da escola pública, e que compreende um proletariado dos serviços públicos. Mas aqueles setores que estão nas fábricas, nas empresas, os quais talvez tenham aderido muito pouco às manifestações, só quando saíam do trabalho podiam participar de uma e de outra manifestação. De qualquer forma, desde junho estes estão fazendo greves, como a dos petroleiros, como a dos bancários, dos metalúrgicos. São várias as greves que têm ocorrido no país. Porque é muito difícil uma categoria de trabalhadores paralisar uma fábrica e fazer uma passeata pelo passe livre; mas é muito plausível, como tem ocorrido, que elas parem o trabalho das fábricas para lutar por melhores condições de trabalho, melhores salários, direitos do trabalho que estão sendo burlados, etc. Este é o primeiro elemento amplo do qual eu queria falar.
Descontentamento mundial
O segundo elemento é que estas rebeliões não ocorrem só no Brasil. Nós as estamos vendo desde o Egito, a Tunísia, o Iraque, a Síria e vários outros países do Oriente Médio. Elas explodiram também na Grécia, em Portugal, na Espanha, com os indignados , chegou à Itália, Reino Unido, Alemanha, França, resultou no Ocuppy Wall Street . Antes disso, dois ou três anos atrás, houve a rebelião inglesa dos bairros mais populares de Londres, como em Brixton , a partir de quando esta explosão se espalhou para várias cidades, como Birmingham e Manchester, e inclusive para outros países do Reino Unido. De tal modo que há um cenário mundial de insatisfação e descontentamento. Este cenário tem a prevalência das classes mais populares e, dentro destas classes populares, daqueles contingentes mais precarizados e dos desempregados das classes trabalhadoras.
No meu entendimento, não é possível pensar nestes movimentos sem relacioná-los com esta condição muito viva deste contingente da classe trabalhadora, que sabe que não é classe média, que sabe que lutou, que entrou na faculdade, que acreditou que os seus empregos iriam melhorar, acreditou que estudando teria mais qualificação, e que, ao terminar a faculdade privada, salvo raríssimas exceções, em termos de trabalho e salário, não obtenha nenhum salto no que concerne a um emprego mais qualificado. Este mito de que o país ia bem desmoronou. Eu publiquei um artigo no início das rebeliões no Brasil na Folha de São Paulo, chamado Fim da letargia . Acabou aquele período em que se acreditava que o Brasil avançava para um país em desenvolvimento, que iríamos ser a sétima economia do mundo, ou a quinta economia do mundo. Este mito ruiu, e com ele o projeto do PT, o projeto do PSDB e, junto com eles, o projeto de todos estes agrupamentos tradicionais.
O que não quer dizer que, nas próximas eleições, são estes jovens trabalhadores que vão decidir, porque há uma questão muito importante para se investigar nestes fenômenos, que é um fosso, um cânion, entre as manifestações das praças públicas, das ruas, das avenidas, e o processo político institucional, o processo parlamentar e mesmo o processo político-eleitoral. Só para citar um exemplo recentíssimo: a eleição do primeiro turno do Chile , que é outro país que nos últimos três anos tem vivenciado rebeliões muito importantes dos estudantes, rebeliões estas que atingiram e se ampliaram também para a classe trabalhadora no último ano e meio. Nesta eleição, como o voto tornou-se não obrigatório no Chile, mais de 50% da população, entre ela parte desta juventude, não foi votar. O absenteísmo no Chile é enorme, é grande na Espanha, é grande em Portugal e é maior ainda nos países em que o voto é obrigatório, nos quais este absenteísmo está presente nas justificativas de ausência de voto, no voto nulo, no voto em branco. Quando a votação é livre, e não obrigatória, as eleições se mostram marcadas sempre por altos níveis de absenteísmo. É mais ou menos neste cenário que eu penso que nós podemos ver a dimensão de luta de classes e as dimensões políticas destes movimentos.
IHU On-Line - De que forma a questão do trabalho impacta sobre os jovens presentes nestas manifestações?
Ricardo Antunes - Este jovem acreditou no mito de que teria trabalho: qualificando-se ao terminar a faculdade, ele teria melhores salários e teria melhores condições de vida. Entretanto, embora ele possa conseguir emprego, a rotatividade é alta — o emprego no call center, por exemplo, é terrível; o emprego no comércio é terrível, a rotatividade é igualmente alta. Além disso, assim como há o aumento do emprego formal, há também o aumento da informalidade, da terceirização, que frequentemente é mais informal do que formal. Eles acreditaram no mito de que estudando o trabalho estaria garantido, de que fazendo uma faculdade o trabalho seria quase uma consequência natural. Entretanto, agora, estes jovens percebem que o trabalho é precário, e que ainda assim é preciso suar a camisa para consegui-lo.
Este jovem depende do trabalho, ele não pode sonhar em viver sem um trabalho. O mito da carochinha de uma sociedade sem trabalho é grotesco. As populações pobres, que no Brasil se conta na casa das dezenas de milhões, os jovens pobres, dependem do trabalho como a única forma de se inserir socialmente e de preservar a sua sobrevivência. Nenhum jovem está satisfeito em viver das "migalhas" do Bolsa Família, que é um programa puramente assistencial, sem nenhum significado estrutural profundo. De tal modo que o sonho de conquistar um trabalho melhor está sendo cotidianamente vilipendiado e fraudado. É preciso lembrar ainda que este jovem trabalhador que estuda ou este jovem estudante que precisa trabalhar para estudar, para pagar sua faculdade, precisa de duas horas e meia, três horas por dia para ir trabalhar e de outro tanto para voltar, utilizando ônibus lotados, transportes que tratam o trabalhador como gado. No caso das trabalhadoras, tem ainda uma questão de gênero vital, porque frequentemente estas jovens, estas mulheres trabalhadoras entram em trens, metrôs, ônibus, e são apertadas, assediadas. Então a vida no trabalho é um sofrimento cotidiano. E isso faz com que o mito de ter um bom trabalho sofra uma corrosão.
IHU On-Line - Avaliações semelhantes podem ser produzidas sobre as manifestações de outubro (que denunciam a violência racista e classista presente nas regiões urbanas)?
Ricardo Antunes - Claro, só que veja bem: não é possível manter um conjunto de manifestações de massa ao longo de vários meses. Assim como ocorreu na Espanha, as manifestações brasileiras têm um caráter de explosão, expansão e refluxo. Mas elas são também manifestações polissêmicas, então passam a ser mais profundas em bairros da periferia que passam por dificuldades na saúde pública, por exemplo, ou resultam na ocupação de estradas por uma população que tem que pagar pedágio para andar quatro ou cinco quilômetros pela rodovia para se deslocar de um bairro a outro, e que paga caríssimo para fazer isso.
Houve manifestações de vários tipos. O Rio de Janeiro tornou-se a cidade mais politizada. Houve uma combinação explosiva de um governo estadual altamente corrupto — as manifestações da imprensa são suficientes para demonstrar isso — e um governo municipal altamente comprometido com determinados projetos nefastos. Bastaria dizer que se gastou muito dinheiro — e imagina-se quem sejam os proprietários dos terrenos com vínculos com o governo — para receber o Papa [Francisco], depois choveu e mudou tudo. É um desmando completo. Em uma cidade em que a favelização é objeto de uma disputa entre o narcotráfico de um lado e a milícia de outro, a cada dia um pobre desaparece. A pretexto de se combater a criminalidade, um Amarildo  desaparece a cada dia.
Esta luta fez emergir o fenômeno dos Black Blocs. As manifestações tornaram-se mais violentas porque há a violência policial e há a violência da sociedade. Alguns destes grupos entendem que não há mais alternativas para responder a esta sociedade violenta. Eu imagino, porque não há ainda muitos estudos sobre isso, que a maior parte dos jovens que estão nos Black Blocs não são filhos da classe média alta, mas são jovens da periferia, que vivem a violência cotidiana na sua porta, no seu bairro, na sua rua, através da polícia que reprime. Isso criou este quadro. E, se não é mais possível ter manifestações todo dia de 200 mil, 300 mil pessoas, é possível ter manifestações de 10 mil, 5 mil, 2 mil, 500 pessoas em várias regiões e várias áreas, construindo-se formas distintas de manifestação do descontentamento social.
IHU On-Line - Estes protestos foram convocados e organizados a partir principalmente das redes sociais. As plataformas digitais são hoje o principal espaço de "convivência" social e laboral?
Ricardo Antunes - Laboral certamente não, embora o espaço internético midiático e as redes [sociais] tenham se tornado referência para as manifestações no mundo inteiro, do Oriente Médio à Europa, dos Estados Unidos ao Brasil, Chile e Argentina. É muito importante lembrar que, durante as primeiras manifestações, as quais reuniam mil, 2 mil, 3 mil trabalhadores em São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Curitiba, Vitória, Belém, Salvador, a imprensa se referia aos participantes como "vândalos e baderneiros". Não havia violência nenhuma, mas [os manifestantes] eram baderneiros porque paravam a Avenida Paulista ou a Marginal Tietê [em São Paulo], e isso trazia baderna, segundo a voz uníssona da imprensa. Ou porque paravam a Avenida Brasil [no Rio de Janeiro], e assim sucessivamente. A imprensa tratou isso duramente.
De qualquer forma, há uma ambiguidade espetacular nas redes sociais. Ao mesmo tempo que as redes sociais permitem que um império destrutivo como o norte-americano, este verdadeiro estado terrorista, controle a vida de milhões de pessoas — eles sabem a vida, os hábitos de consumo, para quem se telefona, com quem se fala; estes e-mails hoje são todos censurados —, é também pela internet que os jovens, especialmente os jovens dessociabilizados da vida urbana — aqueles que enfrentam a lei da selva; porque você briga para entrar no ônibus, você briga para entrar no carro e, para fazer um trajeto de cinco quilômetros que levaria cinco minutos, você leva uma hora e meia —, se organizam, que permite a, digamos assim, volatilidade das manifestações, pois é muito rápida a sua organização pelas redes sociais.
No meu modo de ver, e enfatizo isso com muito destaque, as redes sociais não causam as rebeliões, as redes sociais permitem que as rebeliões explodam, aflorem. Uma manifestação de rua pode ser convocada em poucas horas e por milhares de pessoas. Este é um elemento novo. As redes sociais, portanto, não são o espaço do lazer. Claro que nós sabemos, por outro lado, que há muitos trabalhos que são conectados pela internet, os quais você faz da sua casa — você pode trabalhar de casa, no seu escritório, no seu quarto, onde for. Mas o espaço que a internet por excelência tem pervertido é o espaço da mobilização rápida, ágil, em um tempo quase virtual, como é o mundo internético.
IHU On-Line - Que ser social (sujeito) está presente nestas manifestações?
Ricardo Antunes - Este ser social é um jovem que não tem experiência de luta política nas grandes massas, não tem experiência de ação política. Apesar de serem muito espontâneos, os movimentos só ocorreram, só atingiram 50, 60, 100, 200 mil pessoas, porque houve manifestações organizadas do Movimento Passe Livre, que já existe há vários anos, desde 2007, 2008, em várias capitais, entre as quais cito Porto Alegre, Florianópolis, São Paulo, Vitória, Salvador, Belo Horizonte, entre tantas outras, para tentar não excluir nenhuma. Nas manifestações do comecinho de junho, estavam presentes os setores jovens, a juventude de esquerda, PSOL, PSTU, PCB, o Movimento Passe Livre, que é uma organização mais horizontalizada, mas que inclui os autonomistas, os anarquistas, militantes socialistas, marxistas, os partidos de esquerda, grupamentos menores, movimentos sociais como o dos sem teto.
Quando as manifestações começaram, não foi a direita que chamou estas manifestações. A direita tentou, inclusive setores de direita fascistas tentaram, pegar carona no movimento num momento em que a imprensa começou a ver que a mobilização era irreversível e tentou conduzi-lo para um movimento não político contra os partidos, apenas contra a corrupção, e assim tentar desgastar algumas bandeiras e enfatizar outras. Lembro que houve manifestações, e participei de algumas aqui em Campinas, onde resido, em que havia estudantes de 12, 13, 14 anos participando, para muitos dos quais era, inclusive, o primeiro aprendizado de que é preciso sair da toca, de que ninguém faz manifestação só de casa pela internet, que a internet é muito importante como uma mídia social de massa, mas que a manifestação implica ir para a rua, para a praça pública, e que só pela praça pública, pela manifestação de grandes contingentes, é que isso muda.
E o resultado é que as passagens baixaram de preço, que os pedágios baixaram, que o Congresso [Nacional] tratou de correr com algumas coisas. Nós todos lembramos aquele dia em que a massa tomou a cúpula do Congresso . Por pouco ela não invadiu o Congresso, o Palácio do Planalto. Quer dizer, o país esteve em suspensão durante três, quatro, cinco, seis dias, quando ninguém sabia o que iria acontecer. Em um primeiro momento, havia partidos, grupamentos, juventude, militantes neste movimento. Entretanto, de repente ele expandiu para um amplo leque da juventude. Em muitas das manifestações, os institutos de pesquisa divulgaram um dado de que aquela era a primeira manifestação que essa “estudantada” ia, primeira vez, a uma passeata. Isso mudou a qualidade destes participantes e hoje eles sabem que têm força se forem coletivamente para as ruas.
IHU On-Line - No que este sujeito se difere do jovem da década de 1990, que organizou as manifestações dos caras-pintadas ?
Ricardo Antunes – Em muito. Eu tenho dito o seguinte: na nova morfologia do trabalho, o trabalhador das cidades, o proletariado de serviços, o trabalhador dos hotéis, dos shoppings, o trabalhador do supermercado, aquele que trabalha nos fast foods, aquele que trabalha nas empresas de telefonia (call centers), estes novos trabalhadores não têm ainda uma representação sindical nem política sólida. Os trabalhadores e as trabalhadoras de call centers, por exemplo, são hoje aproximadamente 1 milhão e 600 mil pessoas no Brasil, das quais entre 70% e 80% são mulheres. E são poucos os sindicatos que as representam. Isso é um indicativo de que são sujeitos diferentes. A juventude de hoje acreditou que, estudando como seus pais, teria melhores empregos. Isso demonstrou não ser verdadadeiro. Na Espanha, na população entre 17 e 23 anos, hoje o nível de desemprego passa de 60%. Então o jovem olha para o lado, vê o pai com 45 anos, engenheiro, desempregado, olha para o outro lado, vê a mãe, economista, quarenta e poucos anos, desempregada. Ele vai falar: “para que eu vou estudar?”. Por isso é uma geração que ni estudia, ni trabaja — não estuda e não tem trabalho.
Em uma síntese: as manifestações são as rebeliões deste novo contingente jovem. Estas manifestações têm um corte geracional, é uma geração jovem; têm também corte generacional, são estudantes, meninos e meninas, jovens trabalhadores homens, jovens trabalhadoras mulheres; e têm cortes étnicos — se você analisa outras partes do mundo, percebe que são os imigrantes que estão se rebelando. É um contingente novo que se diferencia, no caso brasileiro, daquele estudante que foi para a rua pelo impeachment de Collor [de Melo], que era o estudante universitário, majoritariamente ligado à universidade pública. O estudante de hoje passa da casa dos 7 milhões que estão frequentando o ensino superior, a grande maioria em faculdades privadas, ultraprecárias e cada vez mais trasnacionalizadas, que cobram caro e que venderam a ilusão do sucesso que nunca chega. Então estes são os novos descontentes do mundo, os quais perceberam que o capitalismo é profundamente destrutivo, ainda que tenham percebido isso intuitivamente. O transporte não funciona, a saúde não funciona, e assim por diante, entre tantos problemas que apareciam nas manifestações, manifestações estas que é preciso estudar e é preciso compreender.
IHU On-Line – Você citou que temos de aprender com as manifestações. Elas serão capazes de propor alternativas ao modelo de democracia representativa?
Ricardo Antunes - Podemos falar muito sobre o que aconteceu, sobre como foram as manifestações, mas podemos falar pouco sobre que consequências teremos. A primeira coisa que posso dizer com tranquilidade, e isso é mais ou menos evidente, é que as manifestações mostraram que existia um fosso, sobre o qual eu falei na primeira pergunta, e que este era um fosso enorme. Se nós fizermos uma pesquisa hoje: “qual é a instituição no Brasil cuja crise de credibilidade é a maior de todas?”, não paira nenhuma dúvida de que a resposta principal será “o parlamento”. A população sabe que o parlamento brasileiro hoje é fundamentalmente um centro de negócios, lobbies, transações, interesses dominantes, sejam estes interesses dos bancos, do agronegócio, dos grandes industriais, enquanto os interesses da população passam longe. Basta dizer que atualmente está em debate no parlamento a terceirização cabal da sociedade brasileira, sobre a qual escrevi recentemente um artigo na Folha de São Paulo . Se este projeto do [deputado Sandro] Mabel (PMDB-GO) passar, teremos uma nova falésia social no Brasil. Quer dizer, vamos ter um processo ainda maior de corrosão social, de fratura social, porque um país onde a terceirização da atividade fim é implantada, como se já não bastasse a tragédia da terceirização das atividades meios, é um país que trata a classe trabalhadora como um contingente sem direitos.
Outra coisa que é possível perceber nas manifestações: elas não querem consertar essa democracia. Estão mostrando que esta democracia que é chamada de democracia é muito curiosa, porque, na origem etimológica da palavra, democracia é poder do povo, e o parlamento não está nas mãos do povo, o Poder Executivo, o Poder Judiciário não estão nas mãos do povo, de tal modo que estas manifestações intuitivas, embrionariamente, espontaneamente, estão dizendo que querem mais democracia direta, mais assembleias populares, maior representação direta. Você imagina o papel importante que teria se os representantes eleitos tivessem seus mandatos revogados toda vez que deixassem de representar condignamente, segundo as bandeiras para as quais foram eleitos, os seus representados. Então estamos vendo o nascimento, digamos assim, de embriões e germes de uma democracia direta, que é o oposto desta democracia formal, a qual, se permite liberdade de manifestações, ainda que restritas, é ao mesmo tempo profundamente antidemocrática no que diz respeito a uma autêntica participação popular, que só ocorre efetivamente quando é inspirada em uma democracia mais direta.
IHU On-Line - A reivindicação de políticas públicas efetivas de transporte, saúde e educação pode tornar-se bandeira de luta unificada de estudantes e trabalhadores de vários setores no Brasil de hoje?
Ricardo Antunes - Pode. E já se tornou, porque, em São Paulo, as manifestações iniciaram nos primeiros dias de junho com muitos estudantes da USP [Universidade de São Paulo], mas já agregava os estudantes da periferia e o mundo do trabalho. De repente, já era o trabalhador da periferia que via a manifestação pelo passe livre e que pensava: “se é para pedir o passe livre, eu também entro nessa”. Assim, as manifestações demonstraram que, na massa, algumas bandeiras podem se tornar vitais. O grande filósofo húngaro marxista Georg Lukács , de quem foi publicado agora recentemente no Brasil o volume 2 de sua monumental Para uma ontologia do ser social (São Paulo: Boitempo Editorial, 2013), e eu tive o prazer de fazer a nota de orelha do livro, diz em um dado momento da obra que a vida cotidiana é uma infindável manifestação de se e mas: “será que eu faço isso?, será que eu faço aquilo?, o que eu vou fazer hoje?, o que eu vou fazer amanhã?”. São os se e mas que nós nos perguntamos no nosso dia a dia, mas que não alteram as nossas vidas. “Será que eu vou comer hoje na minha casa ou vou comer fora?”, isso não altera a minha vida, mas nós nos perguntamos.
Diz Lukács, entretanto, que, quando algumas questões cruciais se condensam, unificam a vida cotidiana, e as populações trabalhadoras percebem que são questões vitais, elas se fundem. Bastaria lembrar dois eventos em dois contextos muito diferentes: a Revolução Francesa de 1789 , que tinha como lema liberdade, igualdade, fraternidade — na qual burgueses e sans-cullotes, como eram chamadas as classes populares na França, lutaram juntos pela igualdade, pela fraternidade e contra o absolutismo dos reis e o controle excludente e manipulador da igreja — e a Revolução Russa de 1917 , de outubro, cujo lema era pão, paz e terra — pão porque a população tinha fome, paz porque ela não aguentava mais lutar a I Guerra Mundial, que não era uma guerra dos trabalhadores russos, mas sim do governo russo, e terra porque, se você tem o controle sobre ela, você produz, sobrevive, gera alimentos. Estas palavras de ordem puseram o povo russo em movimento. Fiz esta digressão para dizer que sim, que estas manifestações de massa tendem a aproximar estudantes e trabalhadores se elas forem capazes de condensar em algumas questões da vida cotidiana a aproximação destes amplos contingentes de massas assalariadas jovens que formam o contingente maior, o polo de propulsão destas manifestações.
IHU On-Line - A institucionalização dos movimentos sociais seria algo desejável?
Ricardo Antunes – Seria uma tragédia. Quando o movimento social se institucionaliza, ele perde a força que tem. Os eventos da CUT [Central Única dos Trabalhadores] e do PT são excepcionais neste aspecto. O PT nasceu como um partido de massa, um partido arraigado na classe trabalhadora, dos trabalhadores da indústria, da classe trabalhadora do campo, dos assalariados médios, do funcionalismo público, e o seu processo de institucionalização – a primeira eleição, a segunda eleição, a eleição seguinte, e assim sucessivamente – o converteu em um partido da ordem. E Marx  dizia que um partido da ordem é um partido que representa essencialmente os interesses das classes dominantes.
O segredo dos movimentos sociais é não perder a vitalidade das bases que eles representam, o que supõe direções colegiadas, manifestações em assembleias, democracia direta. O representante pode ser destituído se deixar de representar as bases do movimento. E tudo isso a sua institucionalização elimina. Um sindicato, quando vira um sindicato institucional, perde a sua vitalidade. Não estou com isso dizendo que estes movimentos sociais não devam participar de lutas institucionais, devem sim participar. Mas as lutas institucionais só podem ter algum sentido quando a prevalência delas está nas lutas sociais e quando assumem uma atuação política distinta e radical, no sentido de ir às raízes. Quando o movimento social abandona a sua base social e vai para a institucionalidade, é um primeiro passo do qual praticamente não haverá mais retorno. Só tem vigência duradora o movimento social que não perde a sua base, a sua autenticidade, a sua democracia da vida cotidiana, a sua representação direta e o exercício da democracia direta. Tudo isso é ceifado e tolhido pelos movimentos em processo de institucionalização.
Por isso considero que é mais do que visível, que só não vê quem não quer, que estas manifestações de rua não querem a institucionalização. Elas querem o direito das massas, das praças públicas, das assembleias, dos modos de direção e representação mais horizontais, dizerem o que querem e porque lutam. Este é pra mim o principal resultado de todas estas manifestações. É claro que abre-se aí um desafio, e este é mais difícil: como esta miríade de movimentos sociais, esta miríade de movimentos de rebeliões, revoltas, manifestações da periferia, no campo, na cidade, no mundo rural, nas grandes cidades, nas pequenas e médias cidades, como elas vão conseguir ter laços de aproximação, de identidade e de organicidade capazes de enfrentar de modo mais poderoso os poderosos interesses do capital. Este é o cenário. É difícil, mas nós podemos dizer o seguinte: é muito mais fácil você pensar como se pode enfrentar os poderosos interesses do capital com alta mobilização nas ruas do que você pensar em como enfrentar os interesses poderosos do capital sem nenhuma manifestação de massa. Portanto, nós podemos dizer que, desde junho, este país não é mais o mesmo, ainda que nós não possamos dizer nada além disso e muito menos prever como serão os próximos passos.

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