quinta-feira, 28 de novembro de 2013

HOMOS SEDENS

Sentados diante de máquinas, vivemos na direção contrária de nossa própria capacidade nômade

Marcia Tiburi
Tratar o ato de sentar como uma questão culturalmente relevante pode soar como mera brincadeira. Quem, começando a levá-la a sério, se perguntar “quanto tempo de nossas vidas passamos sentados?” ou “quantas cadeiras há no mundo?”, por mais que consiga respostas estatisticamente impressionantes, não terá, contudo, atingido o cerne da questão inusitada que nos faz pensar nas formas assumidas pelo sedentarismo como caráter da cultura. Na contramão do nomadismo, o sedentarismo faz parte da história de nossa civilização. Mais do que parte da história, é uma postura que caracteriza nosso tempo presente. A maior parte de nossos gestos corporais acaba no assento; passamos muitas horas do dia sentados, tudo, em nossas vidas, convida-nos a sentar. Mas esse convite agradável ao descanso tem significados mais complexos: sentamos em casa, na rua, nas escolas, sentamo-nos diante de máquinas; sobretudo, hoje em dia, sentamo-nos diante de telas.
Norval Baitello Junior, professor da PUC de São Paulo, escreveu, em seu livro O pensamento sentado (Unisinos, 2012), sobre o lugar do “assento” em uma cultura sedentária. Sua crítica vai na direção de um pensamento sentado que, para ele, seria o pensamento acomodado. Recuperando a expressão alemã usada por Nietzsche para falar da “vida sedentária” – Sitzfleisch –  ele explora a tradução por “carne de assento” que, literalmente, leva à usual “bunda”. Bunda tem um vasto alcance no Brasil. Mesmo que soe deselegante, não seria um erro considerar a atualidade de um “pensamento-bunda”, aquele pensamento cansado que, no extremo, expressa o que entendemos no cotidiano, no âmbito da irresponsabilidade do “bundão”.
O caráter “assentado” é o da “discursividade previsível e acomodada”, a que reduz o ato de pensar em nossa época, contra sua natureza mais íntima. O “decréscimo da mobilidade” do corpo é, segundo ele, também do pensar, cuja imprevisibilidade e capacidade de surpreender estariam em baixa. Conhecemos essa acomodação, sabemos que ela é necessária ao poder, ao sistema econômico e político, que esperam corpos dóceis e mentes paradas, repetindo acomodadamente mais do mesmo que mantém tudo no mesmo lugar: sentado.
Pensar na reflexão aos saltos do livro de Baitello é uma atitude dinâmica, como seria o movimento de nosso corpo, inquieto e propenso a caminhar, pular, correr e saltar. A capacidade humana, que está ligada a todo o nosso processo de aprendizagem em relação à vida, de explorar o entorno, é diminuída quando tudo se reduz a “assento”. O primata que somos se ressente de não poder mover-se.
Regra da cultura
Baitello nos lembra que sentar e sedar têm a mesma origem etimológica: sedere. Assim, comentando que somos “Homo sedens”, a atrofia dos músculos e dos movimentos surge como uma espécie de regra da cultura. Quando observamos o nosso dia a dia, sentados por todos os lados, diante de computadores, da televisão, dentro de carros, temos certeza que a mobilidade corporal que nos caracterizaria, e que ainda se coloca como nossa potência, cede lugar à estranha mobilidade incorporal da máquina. As máquinas se movem em nosso lugar, tornamo-nos imóveis: esperamos sentados a máquina que nos substitui. De certo modo, participamos passivamente de um “devir” imóvel, que não nos leva a lugar nenhum, senão àquele onde já fomos previamente postos.
Por fim, forçados a sentar, vivendo o elogio da disciplina, resistimos enquanto seres sentados em nome de um esforço. Valorizamos aquele que consegue aguentar a sala de aula, a cadeira no trabalho burocrático.
Somos, por fim, vítimas do que Baitello apontou como uma “conjunção perversa”, em que o sedentarismo de nossos corpos alia-se à hiperatividade visual. Anestesiados diante das máquinas, vivemos na direção contrária de nossa própria capacidade nômade.
Talvez fugir desse mundo seja um desejo soterrado por cadeiras numa avalanche mole ao qual nosso corpo se adequa por ter medo de seus próprias potências. Bom lembrar que fugir é sempre um direito.

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