quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Artista libanesa propõe uma 'culinária para a paz'


Por Janaina Fidalgo | Para o Valor, de São Paulo
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Em livro e em aulas, Sheila Mann ressalta as semelhanças entre judeus e árabes: "Israel foi fundado por judeus europeus que acabaram assimilando muito a cultura árabe, especialmente na cozinha e na música"
Quando deixou Beirute, Sheila Mann tinha 13 anos e as preocupações de uma adolescente emigrada. Estava empenhada em fazer novos amigos, assimilar os costumes israelenses e aprender uma nova língua. Custou um pouco para notar a desintegração cultural pela qual sua família e a de outros judeus nascidos no Líbano tinham passado. A eminência da guerra civil (1975-1990) levou os Mann a mudarem para Israel em 1968. A manutenção de certos hábitos cotidianos, especialmente os alimentares, ajudou na adaptação da menina. E foram a eles que Sheila se apegou, cinco anos mais tarde, em sua segunda diáspora pessoal, ao deixar Bat-Yam (cidade litorânea próxima de Tel Aviv) para vir morar com o então marido no Brasil.
O novo choque cultural foi ainda mais drástico que o primeiro. Tanto que nem as comidas da sogra, de origem síria como a família de seu pai, bastavam para amenizar a saudade que sentia dos sabores de sua terra. Por mais que houvesse similaridades entre determinados pratos dos países vizinhos, os temperos em nada lembravam a comida da mãe, Marcelle. Foi à época que Sheila, grávida de gêmeas e vivendo em São Paulo, começou a recuperar as receitas familiares. Cada vez que ia a Israel visitar a família, ampliava o repertório de pratos libaneses feitos pela mãe. Quando não podia tomar aulas pessoalmente, cartas e telefonemas davam conta da transmissão de ensinamentos culinários.
Parte desse repertório, coletado ao longo de mais de 40 anos, Sheila compartilha no recém-lançado "Culinária do Líbano a Israel" (168 págs., R$ 99), publicado de maneira independente pela artista plástica libanesa. O livro de memórias e receitas foi escrito por Luna Alkalay, a quem a cozinheira amadora narrou as histórias da infância em Beirute, o processo de adaptação em Israel, a chegada ao Brasil e as experiências político-pacifistas à mesa.
"Minhas filhas não se interessam por culinária, e eu estava sentindo que essas receitas herdadas de minha mãe iam se perder. Ela era uma supercozinheira. Tudo o que fazia era perfeito. Os quibes saíam todos do mesmo tamanho, os maamouls [doce recheado de tâmaras ou amêndoas] eram impecáveis", diz Sheila Mann em entrevista ao Valor. "A comida libanesa é a mais sofisticada do Oriente Médio. Talvez por ter sido colônia francesa e governado por cristãos, o Líbano é cosmopolita, mais aberto ao Ocidente que os outros países árabes."
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Em seu livro “Culinária do Líbano a Israel”, que reúne memórias de infância e receitas de família, ela traz pratos como arroz com lentilhas (à esq., na foto)
Boa parte dos relatos do livro são pontuados por comida, uma comida carregada de memória e afetividade - Sheila nunca voltou ao Líbano. Os pratos e suas respectivas receitas são o que ela chama de "o paladar da saudade", nome de um dos capítulos e título que inicialmente queria ter dado à publicação. "Descobri em mim uma boa cozinheira quando consegui reproduzir o gosto da comida da minha mãe", escreve no capítulo final.
Foi a fama de boa cozinheira, aliás, que levou a chef Carla Pernambuco, dos restaurantes Carlota e Las Chicas, a convidá-la a preparar um jantar libanês para 20 pessoas para o Gastropop - série de jantares realizados em 2008 no Studio 786, em Higienópolis, em São Paulo.
Em meio às memórias contadas no livro, aparecem receitas ligadas a cada momento descrito: as festas judaicas e o que se comia, os pratos cotidianos, as receitas mais simples e rápidas para o dia de lavar roupas, as comidas de rua. Na festa do Purim, recorda-se da mãe pondo defeito nos doces alheios, nunca tão gostosos quanto os dela. "Maamouls de tâmara com muita massa e pouco recheio", dizia.
Pessach era época de limpar as panelas ("Para serem purificadas de qualquer resquício de carne ou de leite") e também de preparar todas as comidas em casa: da harousset, uma geleia de uva passa preta e tâmaras, ao kibbé de matzá, feito com o pão ázimo que simboliza a saída dos judeus escravizados do Egito.
Na Festa das Luzes, o Hanukkah, comiam os doces fritos, como o trabalhoso tamriyé e o perigoso awwameh, que a mãe da autora raramente fazia por medo de estourarem e espirrarem óleo na pele de alguém. No capítulo dedicado aos tios, narra os passeios pelos souks, os mercados de rua, quando tomava jallab (suco de tâmara) com pignoli ou refresco de tamer hindi (tamarindo). Ou os cafés da manhã compartilhados com o tio Maurice, que encomendava foul medamass (cozido de fava seca) ou fatteh (pão sírio com grão-de-bico).
A última receita do livro é, não por acaso, a de "mais saudade". Uma abobrinha recheada de arroz e vegetais preparada por Sheila "só às vezes", quando convida os filhos para almoçar em sua casa. À mesa, a autora também compartilha a experiência de quem nasceu judia em um país árabe. Faz jantares nos quais recebe convidados com as duas ascendências no que chama de "culinária para a paz". Percebeu que, pela comida, poderia aproximar os dois povos, salientando as semelhanças que tinham, e não as diferenças.
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Também está no livro o prato arroz com favas e coalhada seca
"Quando a mãe quer ver os filhos, o que ela faz? Um jantar. Muita coisa acontece ao redor da mesa", diz Sheila sobre o projeto Peace on the Table. "Para mim era muito fácil dialogar com os dois lados. Afinal tenho origem árabe, falo a língua e conheço bem a cultura, e ao mesmo tempo sou judia. Vivi em Israel e sei hebraico. Mesmo quando os convidados não se conhecem, ocorre uma química."
O efeito pacificador é atribuído à comida, compartilhada pelos dois povos. "Israel foi fundado por judeus europeus que acabaram assimilando muito a cultura árabe, especialmente na cozinha e na música. A comida árabe é muito mais rica que a comida dos asquenazi [judeus oriundos da Europa oriental], baseada em batata, beterraba e cebola. A culinária dos sefaradi [provenientes da Espanha e Oriente Médio] é bem mais interessante e saborosa. Tem muita amêndoa, pistache, pignoli, damasco e tâmara."
Sheila chama a atenção para o fato de a comida de rua em Israel ser essencialmente árabe e menciona exemplos de receitas adaptadas ao gosto dos israelenses. "No Líbano, falafel se faz com grão-de-bico, fava seca e bastante coentro e salsinha. Tanto que, quando você abre, a massa é bem verde. Em Israel, ao contrário, é clarinho, porque usam só com grão-de-bico. Shawarma, no meu país, é de carne de carneiro. Em Israel, para sair mais em conta, usam carne de peru com um pedaço da gordura de carneiro para dar gosto", diz. "Agora o que realmente caiu no gosto do israelense foi o hommos [pasta de grão-de-bico com molho de gergelim]."
Em aula que deu recentemente na Casa do Saber dos Jardins, em São Paulo, Sheila buscou reforçar uma vez mais a questão das semelhanças culturais na música e especialmente na cozinha. Ao passar adiante as tradições familiares, ela quer mostrar que a comida é uma "ferramenta do amor e da paz".


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