quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O conflito capital-trabalho nas crises atuais



É surpreendente que na extensíssima literatura que se escreveu sobre as causas das crises atuais muito pouco se centrou no conflito capital-trabalho (aquilo a que se costumava chamar luta de classes) e a sua génese no desenvolvimento da crise

Vicenç Navarro

Greve Geral
Uma possível causa desta situação é a enorme atenção que tem tido a crise financeira como suposta causa da recessão atual. Mas tal atenção desviou os analistas do contexto, económico e político, que não só determinou, como configurou a crise financeira assim como a crise económica, social e política. Na realidade, não se pode analisar cada uma delas e a maneira como estão relacionadas sem nos referirmos a tal conflito. Como bem disse Marx, a história da humanidade é a história da luta de classes. E as crises atuais (desde a financeira à económica, passando pela social e política) são um claro exemplo disso.
Vejamos os dados. Durante o período pós II Guerra Mundial, esse conflito manteve-se através de um pacto entre o capital e o mundo do trabalho que determinou que os salários, incluindo o salário social (que se refletiu no aumento da proteção social mediante o desenvolvimento das transferências e serviços públicos do Estado Social), evoluíssem de acordo, predominantemente, com o aumento da produtividade. Como consequência disso, os rendimentos do trabalho aumentaram consideravelmente, atingindo o seu máximo (nos dois lados do Atlântico Norte) na década de setenta (a participação dos salários, em termos de remuneração por empregado, nos EUA foi de 70% do PIB; nos países que se tornaram mais tarde na UE-15, esta percentagem era de 72,9%; na Alemanha 70,4%; em França 74,3%; em Itália 72,2%; no Reino Unido 74,3% e em Espanha 72,4%)1.
Este pacto social foi rompido no final da década de setenta / princípios dos anos oitenta como consequência da rebelião do capital perante os avanços do mundo do trabalho. A resposta do capital foi o desenvolvimento de uma cultura económica nova baseada no liberalismo, mas com uma maior agressividade, resultado, naquele momento, da sua postura defensiva face aos avanços do mundo do trabalho. A sua versão nas políticas públicas foi o que se chamou neoliberalismo, que tinha como objetivo recuperar o terreno perdido mediante o mundo do trabalho2. A partir de então, o crescimento da produtividade não se traduziria tanto no incremento dos rendimentos do trabalho, mas sim no aumento dos rendimentos do capital. E esta resposta, mediante o desenvolvimento das políticas neoliberais (que constituíam um ataque frontal à população trabalhadora), teve muito êxito. Os rendimentos do trabalho desceram na grande maioria dos países citados anteriormente. Nos EUA passaram a representar em 2012 63,6% do PIB; nos países da UE-15 66,5%; na Alemanha 65,2%; em França 68,2%; em Itália 64,4%; no Reino Unido 72,7%; e em Espanha 58,4%. A descida dos rendimentos do trabalho durante o período 1981-2012 foi de 5,5% nos EUA, 6,9% na UE-15, 5,4% na Alemanha, 8,5% em França, 7,1% em Itália, 1,9% no Reino Unido e 14,6% em Espanha, sendo neste último país onde a descida foi maior.3
O contexto político
Estas políticas foram iniciadas pelo Presidente Reagan em 1980 e pela Primeira Ministra Margaret Thatcher em 1979, no Reino Unido. Estas políticas foram também aceites como inevitáveis e necessárias pelo governo de François Mitterrand em França em 1981, ao sustentar que o seu programa de clara orientação keynesiana (com o qual tinha sido eleito) não podia ser aplicado devido à europeização e globalização da economia, postura sustentada mais tarde pela corrente dominante dentro da social-democracia europeia conhecida como Terceira Via. A aplicação das políticas neoliberais, definidas como social-liberais dentro dessa tradição política, caracterizaram as políticas dos governos social-democratas na UE. Todas elas tinham como objetivo facilitar a integração das economias dos países da UE no mundo globalizado, aumentando a sua competitividade na base do estímulo às exportações à custa da redução da procura interna, reduzindo os salários. Daí deriva que uma consequência destas políticas tenha sido a não repercussão do aumento da produtividade em aumentos salariais, mas sim no aumento dos rendimentos do capital.
Para atingir este objetivo, o desemprego foi um componente chave para disciplinar o mundo do trabalho. Em todos estes países, o desemprego aumentou enormemente. Nos EUA, passou de 4,8% em 1970 para 9,6% em 2010. Nos países da UE-15 passou de 2,2% para 9,6%; na Alemanha de 0,6% para 7,1%; em França de 1,8% para 9,8%; em Itália de 4,9% para 8,4%; no Reino Unido de 1,7% para 7,8% e em Espanha de 2,4% para 20,1%, sendo este crescimento maior neste último país. 4
Esta polarização dos rendimentos, com grande crescimento dos rendimentos de capital à custa dos rendimentos do trabalho, foi a origem das crises económicas e financeiras. A diminuição dos rendimentos do trabalho criou um grande problema de escassez da procura privada, que passou despercebida em consequência de vários factos. Um deles foi a reunificação alemã em 1990 e a enorme despesa pública que a acompanhou (a fim de incorporar o Leste da Alemanha ao Oeste e facilitar a expansão da Alemanha Ocidental na Oriental), que se financiou principalmente na base do aumento do défice público da Alemanha, passando de estar em superavit em 1989 (0,1% do PIB) para ter défice desde esse ano, atingindo 3,4% em 1996, estando em défice todos os anos desde 1989. A Alemanha seguiu, pois, uma política de estímulo, através da despesa pública, que (como resultado do seu tamanho e centralidade) beneficiou toda a economia europeia.5
O segundo facto foi o enorme endividamento da população, endividamento que atrasou o impacto que a descida dos rendimentos do trabalho teve na redução da procura. Este endividamento foi facilitado na Europa com o estabelecimento do euro, que teve como consequência a tendência para confluir os interesses dos países da zona euro com os da Alemanha. A substituição do marco alemão e de todas as outras moedas da zona euro pela mesma moeda, o euro, teve como consequência a germanização dos interesses monetários. O caso da Espanha é um exemplo claro. O preço do crédito nunca tinha sido tão baixo, facilitando o enorme endividamento das famílias (e empresas) espanholas, passando assim despercebida a enorme perda de capacidade aquisitiva da população trabalhadora.
Por outro lado, a grande acumulação de capital (resultado do facto de a maior parte do aumento de riqueza dos países, causado pelo aumento da produtividade, ter ido predominantemente para o aumento dos rendimentos do capital em vez dos rendimentos do trabalho) explica o aumento das atividades especulativas, incluindo o aparecimento das bolhas, das quais as imobiliárias foram as mais comuns, ainda que não tenham sido as únicas. A rentabilidade era muito mais elevada no setor especulativo do que no produtivo, o qual estava algo estagnado, em resultado da diminuição da procura. O crescimento do capital financeiro foi a caraterística deste período nos dois lados do Atlântico Norte, crescimento resultante do endividamento e das atividades especulativas. Este crescimento baseava-se, em parte, na necessidade de endividamento, devido à contínua descida do crescimento anual da compensação salarial em todos estes países, uma situação especialmente acentuada nos países da UE-15. Assim, tal crescimento anual médio nos países da zona euro desceu de 3,5% no período 1991-2000 para 2,4% no período 2001-2010; na Alemanha de 3,2% para 1,1% e em Espanha de 4,9% para 3,6%.6
A explosão das bolhas
Os establishments financeiros e políticos, tanto da União Europeia como da maioria dos países da zona euro, acharam que a crise financeira tinha sido criada e originada pelo colapso do banco norte-americano Lehman Brothers e limitar-se-ia ao sector bancário dos EUA. Thomas Palley cita aquele que era Ministro das Finanças da Alemanha, o socialista Peer Steinbrück (hoje candidato à presidência do partido social-democrata) que profetizou que esse acontecimento significaria o fim do status dos EUA como grande poder financeiro, em resultado das debilidades do sistema financeiro norte-americano. O colapso do dólar, segundo ele, beneficiaria o euro.
A grande ironia destas profecias é que quem, no final, salvou a banca alemã foi o Federal Reserve Board (FRB), o Banco Central dos EUA. O modelo alemão baseado na exportação tornou a banca alemã altamente vulnerável à contaminação. Os bancos alemães estavam massivamente intoxicados com os produtos especulativos da banca norte-americana. Os grandes bancos alemães (como o Sachsen LB, o IKB Deutsche Industriebank, o Deutsche Bank, o Commerzbank, o Dresdner Bank ou o Hypo Real Está) bem como as Caixas alemãs (como BayernLB, WestLB e DZ Bank) entraram no período 2007-2009 numa enorme crise de solvência, tendo que ser todos eles resgatados, muitos dos quais com a ajuda do FRB dos EUA.
A orientação económica, baseada na exportação (algo típico do modelo liberal), tinha contagiado profundamente o capital financeiro alemão, como resultado dos seus investimentos financeiros tanto na banca norte-americana (cheia de produtos tóxicos) como na dos países periféricos chamados PIGS (Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha) e mais tarde GIPSI (com a incorporação da Itália), cheias de atividades especulativas de tipo imobiliário. Na realidade, a crise financeira alemã e europeia era inclusive pior que a norte-americana e, quando a enorme bolha especulativa explodiu (paralisando a banca alemã), apareceu com toda a crueza o enorme problema de endividamento causado pela redução da procura, à qual fiz referência nos pontos anteriores.
Por que é que a crise financeira é pior na Europa?
Uma das causas disso é a arquitetura do sistema de governo do euro, resultado do domínio do capital financeiro na sua governança. Tal sistema de governo é produto de um desenho neoliberal que se baseia na diferença de comportamentos entre o Banco Central Europeu (BCE) e o FRB e no diferente tipo de modelo exportador dos EUA e da zona euro (multipolar nos EUA e centrado na própria zona euro no caso europeu).
O BCE não é um banco central. O FRB é. O BCE não empresta dinheiro aos Estados e não os protege perante a especulação dos mercados financeiros. Daí que os Estados periféricos estejam tão desprotegidos, pagando juros claramente abusivos que têm dado origem à enorme bolha da dívida pública destes países. Isto não ocorre nos EUA. O FRB protege o Estado dos EUA. A Califórnia tem uma dívida pública tão preocupante como a grega, mas isto não é uma situação asfixiante para a sua economia. Mas, é-o na Grécia.
À luz destes dados é absurdo que se acuse os países periféricos de terem causado a crise devido à sua falta de disciplina fiscal. A Espanha e a Irlanda estavam com superavit nas suas contas do Estado durante todo o período 2005-2007. Eram os discípulos prediletos da escola neoliberal, dirigida pela Comissão Europeia, sendo o Ministro Solbes, que tinha sido Comissário dos Assuntos Económicos da UE, o arquiteto de tal ortodoxia. Na realidade, a Alemanha, durante o período 2002-2007, teve défices públicos maiores do que a, supostamente indisciplinada, Espanha.
Não foi a sua inexistente falta de disciplina, mas sim a falta de um Banco Central que apoiasse a sua dívida pública, que causou o crescimento dos juros da dívida pública, na posse dos bancos alemães entre outros, que beneficiaram com a subida do prémio de risco. O fim primordial das medidas de cortes da despesa pública, incluindo a despesa pública social, é pagar os juros à banca alemã, entre outros. O enorme sacrifício dos países GIPSI não tem nada a ver com a explicação que é dada nos média e noutros fóruns de difusão do pensamento neoliberal, que atribuem os cortes à necessidade de corrigir os excessos, mas sim com o pagamento a uma banca que controla o BCE que, em vez de proteger os Estados, os debilita para que tenham que pagar maiores montantes à banca. A evidência desta situação é esmagadora. O famoso resgate à banca espanhola é, na realidade, o resgate à banca europeia, incluindo a alemã que tem mais de 200.000 milhões de euros investidos em ativos financeiros espanhóis.
Uma nova explicação da crise
Uma variação desta explicação é o argumento de que o problema da zona euro é o grau do diferencial de competitividade, com alta competitividade no centro - Alemanha e Holanda - e baixa competitividade no sul - GIPSI. Este diferencial explicaria que os primeiros tenham balanças de comércio externo positivas (exportam mais que importam), enquanto os segundos as têm negativas (isto é, importam mais do que exportam). Daí que a solução passe por um maior crescimento da competitividade dos segundos. E a melhor maneira é baixar os salários (o que se chama desvalorização doméstica).
Mas tal explicação tem sérios problemas. Em primeiro lugar, nem a Irlanda nem a Itália tinham balanças comerciais negativas quando a crise se iniciou. E mais, o crescimento da componente negativa da balança de pagamentos nos países GIPSI deveu-se predominantemente ao aumento das importações, resultado do endividamento, não da descida da produtividade ou da competitividade. E agora a melhoria da sua balança comercial deve-se à sua escassa procura. Em ambos os casos, pouco tem a ver com mudanças na competitividade. Na realidade, a produtividade laboral padronizada por atividade económica não é substancialmente diferente em Espanha e na Alemanha. O problema, pois, não pode explicar-se por um diferencial de competitividade, mas sim por um diferencial de procura, acentuado a nível europeu por um problema estrutural, resultado da descida dos rendimentos do trabalho. O motor da economia da zona euro baseia-se no modelo exportador alemão, cujo sucesso assenta na moderação salarial alemã (com salários muito abaixo do nível correspondente ao nível da produtividade), na impossibilidade dos países periféricos poderem reduzir o preço da sua moeda (beneficiando a Alemanha com isso), na enorme concentração de euros, na mobilidade de capitais da periferia para o centro e no domínio das estruturas financeiras, através da enorme influência sobre o BCE que não atua como um Banco Central. Ver a balança de pagamentos como resultado de uma diferença de produtividade é profundamente erróneo.
Na realidade, a Alemanha deveria atuar como motor estimulante da economia, não mediante o aumento das suas exportações (baseadas em baixos salários), mas sim num crescimento da sua procura interna, incrementando os seus salários e a sua escassa proteção social. O trabalhador alemão tem mais em comum com os trabalhadores dos países GIPSI do que com o seuestablishment financeiro e exportador. E nos países periféricos deveriam seguir-se também políticas de estímulo, revertendo as políticas de austeridade que estão a contribuir para a recessão, para além do mal-estar que provocam nas classes populares. A essas políticas certamente se oporão os agentes do capital, pois verão reduzidos os seus rendimentos. Marx, afinal, tinha razão.
1 ECFIN. European Comission Statistical Annex. Table 32. Autum 2011
2 Breve Historia del Neoliberalismo, David Harvey, 2007
3 ECFIN, European Commission. Statistical Annex, Table 32, Autumn 2012
4 ECFIN. European Comission. Statistical Annex. Autum 2011
5 Para uma expansão deste e de outros pontos citados nesta secção aconselha-se a leitura do excelente artigo “Europe's crise without end. The consequences of neoliberalism run amok” de Thomas I. Palley - uma das mentes económicas mais claras dos EEUU e mais desconhecidas na Europa- em IMK Working Paper. March 2013. no. 111
6 Thomas I. Palley op. cit.

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