terça-feira, 29 de outubro de 2013

Indiferença política, diferença cultural

No número 114 da revista Fórum, o professor Idelber Avelar colocou questões importantes a respeito de meu livro A esquerda que não teme dizer seu nome. Tais questões me permitiram compreender melhor o caráter insuficiente e pouco claro de formulações que avancei no livro. Por isso, este é um debate pelo qual agradeço e que me permite medir melhor o impacto de certas formulações.

Vladimir Safatle
Avelar reconhece a importância de retomarmos discussões a respeito da centralidade do conceito de “soberania popular”. Como ele mesmo lembra, vivemos um momento no qual, mesmo no campo da esquerda, a distinção entre Direito e Justiça parece tacitamente esquecida. Um institucionalismo covarde parece nos querer acostumar às imperfeições institucionais do “Estado democrático de direito”, como se devêssemos abandonar de vez a defesa de um campo no qual o político se afirma muitas vezes fora do quadro do ordenamento jurídico posto.
No entanto, ele critica minha ideia de que a indiferença deva ser elevada a afeto político central. Ela foi o resultado de uma maneira de insistir na importância do igualitarismo como valor definidor da pauta política da esquerda. De fato, por “igualitarismo” devemos entender duas coisas complementares: a) a compreensão de que a desigualdade econômica é um entrave à afirmação social da liberdade (e por isso deve ser combatida por meio de políticas substantivas de redistribuição); b) a compreensão de que nossas sociedades multiculturais caminham para se transformar em sociedades da exclusão cultural.
Esse segundo ponto foi o cerne do desconforto de Avelar. Tal desconforto já havia aparecido à ocasião de outras resenhas. A meu ver, ele deriva em larga medida da impressão de que eu estaria a defender um universalismo abstrato e incapaz de levar em conta a importância, desde meados dos anos setenta, das políticas culturais da diferença no redimensionamento dos horizontes de reconhecimento de nossas sociedades liberais. Um pouco como se estivéssemos ainda presos à dicotomia entre o internacionalismo esquerdista da luta de classes e os riscos de atomização social advindos da afirmação da sociedade como um tecido de diferenças culturais, étnicas, religiosas, sexuais, entre outras.
Reconheço que algumas formulações de meu livro podem, em certos momentos, dar a impressão de que sigo essa via. Talvez seja o caso de encontrar algumas enunciações menos ambíguas. No entanto, creio que há vários momentos nos quais deixo claro que não se trata mais de ignorar a importância das dinâmicas de afirmação das diferenças recaindo em uma espécie de política universalista simplória. Trata-se de afirmar que nossa tarefa atual consiste em criar modelos de políticas pós-identitárias. Não se trata de caminhar para trás, mas de ir para frente.
A esse respeito, insistiria mais uma vez que nossa época é marcada pela inversão dos efeitos do multiculturalismo. É tal inversão que nos força atualmente a pensar. Se a crítica conservadora procura desqualificar o multiculturalismo por suspeitar do “cosmopolitismo” e da “desagregação dos valores nacionais”, há uma crítica que lembra como o multiculturalismo tem sido, até agora, pouco multicultural. Ele foi importante para dar visibilidade a grupos até então vítimas de constante exclusão. Mas não podemos mais continuar insensíveis ao fato de boa parte do recrudescimento do racismo e da xenofobia ter se dado em nome da tolerância multicultural. Não por acaso, dentre os países mais xenófobos da atualidade estão alguns que eram vistos como exemplo de tolerância multicultural, como a Holanda.
O que gostaria de salientar é o equivoco de elevar a luta pela constituição da identidade a uma bandeira política defensável. Muitos esquecem que as ditas políticas das diferenças são, no fundo, políticas de afirmação identitária. Elas acabam por organizar a vida social em um tecido composto por identidades estanques e, em várias situações, inflexíveis. Uma verdadeira política da diferença só pode ser uma política da des-identidade. Ela não se contentará em transformar enunciados como “Eu sou quilombola”, “Eu sou índio”, “eu sou homossexual” em realizações finais dos processos sociais de reconhecimento. Ela tentará criar quadros institucionais para o reconhecimento de enunciados como: “Eu sou animado por uma experiência de indeterminação que me faz não me reconhecer completamente como quilombola, negro ou homossexual”.
Tal indeterminação tem, a meu ver, forte potencial político e emancipador. Ela permite a criação de uma solidariedade forte para além da afirmação natural de diferenças étnicas, religiosas e sexuais. Pois ela permite que a sociedade seja compreendida como portadora de uma “zona de indiferenciação e indistinção”, na qual as diferenças culturais são submetidas a uma saudável indiferença política.
Nesse sentido, não creio que o problema encontre-se no fato de a “esquerda uspiana” não visitar o Xingu. Posso concordar com Avelar que as reflexões de Hegel e Marx são marcadas por um eurocentrismo muitas vezes medonho. Basta lembrar as páginas da filosofia da história de Hegel sobre a África, assim como a defesa feita por Marx da Inglaterra na guerra do Ópio. Eu mesmo já critiquei a caricatura europeia das formas de organização simbólica de tribos africanas por meio da construção da categoria de “fetichismo” (ver o primeiro capítulo de meu livro Fetichismo: Colonizar o Outro – Editora Civilização Brasileira). Da mesma forma, posso entender a exasperação de Avelar com uma certa teoria social do progresso, que durante tempos esteve presente em círculos de esquerda e que via, na afirmação dos povos indígenas, algum tipo de defesa dos arcaísmos e das ilusões da origem.
No entanto, não se trata de desqualificar exigências legítimas de reconhecimento de minorias, mas de recusar a crer que os problemas sociais de reconhecimento terminem por aí. A esquerda uspiana deve visitar o Xingu, como deve visitar a Tunísia, a Finlândia, a periferia de São Paulo, a City de Londres e aprender a pensar a partir do sistema de circulação entre tais particularidades. Não há lugares privilegiados que nos forçam a pensar. Pensamos através da circulação entre lugares. Pensamos no ponto de conexão entre o Xingu e o Soho, entre Cidade Ademar e a periferia do Cairo.
Por fim, há uma questão bastante relevante levantada por Avelar quando afirma que a elevação do Estado a espaço não comunitarista de afirmação da indiferença às diferenças parece querer esquecer que o próprio Estado moderno pode aparecer como o espaço comunitarista por excelência. Essa é uma boa crítica. Eu tenderia a defender-me levantando dois pontos.
Primeiro, o Estado moderno demonstrou ser o espaço político que mais avançou na institucionalização de demandas de igualdade substancial e formal. Ele conseguiu guiar-se, em larga medida, pela necessidade de dissociação entre nação, povo e Estado, permitindo que, no horizonte, ideias de homogeneidade étnica e de nacionalidades saiam paulatinamente de circulação em prol de Estados pós-nacionais que não sejam meras associações comerciais de defesa de interesses do sistema financeiro. Por isso, o Estado não pode ser reduzido a um mero aparelho de classe ou a uma invenção eurocêntrica. No seu interior, pulsam, ao mesmo tempo, experiências de emancipação social, de institucionalização de conquistas sociais e culturais igualitárias, e experiências de regressão social. Nesse sentido, o Estado moderno não é uma instituição monolítica, da mesma forma que nosso ordenamento jurídico não é uma construção monolítica. É o resultado da sedimentação de lutas sociais que, se não alcançam a realização de seu potencial de transformação, acabam por ficar em latência forçando transformações futuras.
Segundo, a experiência do Estado moderno foi desenvolvida por meio da confrontação com realidades fora do espaço europeu, o que mudou substancialmente sua base identitária. Para voltar a um exemplo de Avelar, se há atualmente preocupação com as comunidades quilombolas, é porque o Estado moderno compreende como seu dever desenvolver políticas compensatórias e de preservação da diversidade cultural.
Muito ainda haveria o que se dizer a respeito das colocações de Avelar. Certamente, este debate não termina por aqui. F
Vladimir Safatle é professor da Faculdade de Filosofia da USP, é autor do livro “A esquerda que não teme dizer seu nome”

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