domingo, 27 de outubro de 2013

Acontecimento à brasileira

No Brasil, aconteça o que acontecer, não acontece nada: a geração que popularizou o café sem cafeína, a cerveja sem álcool, agora defende o protesto sem protesto

Bruno Garcia
Manifestantes voltam a ocupar a Cinelândia em ato de apoio aos presos políticos, no Rio de Janeiro (Foto: RHBN / Rodrigo Elias)
Manifestantes voltam a ocupar a Cinelândia em ato de apoio aos presos políticos, no Rio de Janeiro
O estado do Rio de Janeiro continua na vanguarda, e não se atrevam a discordar. Em termos de legislação relâmpago e reação enérgica, não há igual. Estamos aprendendo por aqui. Aliás, devemos tomar cuidado com o que escrevemos. Todos parecem muito sensíveis ao debate e alguém pode achar que estou incitando a violência. Depois que entrou em vigor a nova lei de organização criminosa, não é preciso muito para ser enquadrado. E, como quem legisla e julga é o próprio estado, é melhor não arriscar.

Quem achou que a multidão nas ruas iria intimidar autoridades ou que a repressão provocaria, no mínimo, algum debate sobre o cotidiano de se viver com medo da própria polícia, se enganou. No Brasil, aconteça o que acontecer, não acontece nada. A violência policial, divulgada aos montes desde junho (mesmo que muita gente descolada tenha ficado em casa e não tenha visto nada), se repete a cada protesto e tudo leva a crer que a coisa está longe de acabar. Os professores já estão sendo chamados para prestar conta sobre suas "faltas" e manifestante agora é quase sinônimo de vândalo e baderneiro. Do helicóptero não deu para ver a multidão na Rio Branco aplaudir o grupo que usa a tática black bloc, depois de, em outros protestos, terem defendido professores da gentileza dos "excessos" ilegais da polícia. Mas, como brasileiro é sempre muito criativo, a solução foi transformar em legal o que antes não era.
De uma funesta comissão, com prioridade absoluta para punir manifestantes, à proibição de máscaras, o Rio de Janeiro se destaca cada vez mais na criação de leis e instrumentos coercitivos. A retórica do Estado democrático continua, mas vale tudo para tirar essas pessoas da rua.

O governo, no entanto, não está sozinho. Em outra frente, os principais jornais e revistas se comprometeram em fotografar vidraças quebradas e discutir a extinção do mico-leão dourado. Deu certo. A turminha que gritava que o gigante acordou agora repete o mantra de que a manifestação pacífica foi infiltrada por arruaceiros que se aproveitam (!?!) para depredar.
Dinossauros de farda, saudosos da ordem militar, ganharam a adesão de jovens que acham que tudo se resolve cantando o hino, abraçando a bandeira, propagando plataformas maduras como "vergonha na cara". No fundo, pregam a higiene do protesto, desejando que não passe de uma caminhada civil. A geração que popularizou o café sem cafeína, a cerveja sem álcool, agora defende o protesto sem protesto. Quem sabe não criam para isso um protestódromo?
Como os amantes da ordem absoluta desejam, todos teriam seu lugar. Os black blocs poderiam usar abadás escuros, a televisão e as cervejarias teriam seus camarotes. Papelarias e gráficas nas redondezas venderiam cartazes com mensagens personalizadas e ainda poderíamos dividir em diferentes noites (como no Rock in Rio!) as causas dos rebeldes verdadeiramente organizados. Às segundas, professores e estudantes; às terças, gente do transporte público; quarta, médicos e funcionários da saúde;  quinta-feira é o dia de todos contra a corrupção, e por ai vai. Tudo seria transmitido com varias câmeras, poupando o uso de helicópteros. Talvez fosse bom espalhar uns objetos como pichorras mexicanas para que os que forem vestidos de vândalos possam quebrar alguma coisa.  No final elegeríamos uma musa e a polícia marcharia acenando ao público e mandando todo mundo pra casa. Quem sabe o Galvão Bueno, grande especialista em forjar singularidades nacionais, não topa narrar tudo isso ao vivo?

Por alguma razão, a ideia de que somos um povo pacífico, e que isso corresponde a um lastro de civilidade, funcionou. Pouco importa o lugar de destaque no ranking de distribuição de renda, os séculos de escravidão, o contingente de mortos e desaparecidos sem qualquer investigação e a quantidade crescente de mulheres estupradas. O inimigo do estado é o sujeito que reage à violência policial e quebra vidraça de banco. Não da Biblioteca Nacional ou do Theatro Municipal.

Sinceramente, depois de protestos e mais protestos, qual foi a reação do estado? O que foi feito para que todos voltassem satisfeitos pra casa? Depois de todo teatro patético da CPI dos Ônibus, protagonizado por vereadores que eram contra sua criação, alguém realmente acha que imoral é pichar aquele prédio? A democracia é um aprendizado perpétuo, e os alemães deram o exemplo construindo um parlamento onde as pessoas podem caminhar por cima do plenário, como uma lembrança enfática de que os representantes são subordinados, não chefes. Protestos de menor escala na França, em 2009, destruíram mais de 300 carros. Em 2011, no norte de Londres, moradores chegaram a destruir imóveis da própria rua que moravam. No Brasil basta uma vidraça quebrada para que o medo da desordem ameace essa ilusão de grandeza e pacifismo.

Não surpreende que estejamos falando mais de vidro de banco do que das causas de toda essa mobilização. Até o momento nenhuma CPI começou a funcionar. Não houve reforma política nem qualquer indício de que alguma coisa vá mudar. Ao invés disso, tudo segue como antes, já que a máquina do estado conta com a cooperação do legislativo, para evitar maiores problemas alimentando a repressão, e da grande imprensa para apresentar os protestos apenas na sua versão oficial, isso é, uma batalha contabilizada pelo número de presos e policiais feridos. Afinal, ano que vem é ano de eleição e nada mais brasileiro do que agir para que nada aconteça.

Um comentário:

  1. Acho que circo armado não partiu dos que eram contra a cpi dos ônibus e sim dos próprios que pediram a instauração dela. Está claro que partidos da oposição também tinha ligação com manifestantes..

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