quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Para uma sociologia do arame farpado

Criado há 140 anos, ele mantém-se como símbolo da opressão e seu caráter bruto. Mas diversificou-se e assumiu versões até “ecológicas”, num sinal das metamorfoses do poder

Olivier Razac
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Inventado em 1874 por um fazendeiro norte-americano, Joseph Glidden, para cercar as propriedades das Grandes Planícies, o arame farpado tornou-se imediatamente um instrumento político de primeira importância. Em menos de um século e meio, ele serviu para cercar as terras e assim afastá-las dos índios norte-americanos, e para encerrar populações inteiras durante a guerra de independência de Cuba (1895-1898) e a segunda guerra dos bôeres na África do Sul (1899-1902); além disso, alimentou as trincheiras da Primeira Guerra Mundial e forneceu a cerca incandescente dos campos de concentração e exterminação nazistas.
Essencialmente, o arame farpado do tipo “Glidden” destina-se apenas a uso agrícola. Quando se trata de afastar homens, ele é substituído pelo arame farpado dito “lâmina”: pequenas lâminas cravadas no fio central, que podem ao mesmo tempo cortar e furar o intruso, substituem as farpas. A forma da lâmina muda de acordo com a utilização prevista e pode servir tanto à simples dissuasão como ter a capacidade de ferir mortalmente.
A persistência de um objeto tão pouco elaborado pode surpreender. Em um século de progressão tecnológica fulgurante, ele continua eficiente para realizar o que se espera dele: delimitar o espaço, traçando no solo as linhas de uma partilha ativa. Nesse papel, ele é excelente. Sua leveza permitiu cobrir distâncias extraordinárias e sua flexibilidade responde a todas as necessidades: proteger, fortificar, fechar… Tudo isso com um fio de metal cheio de pequenas pontas. A distância entre a simplicidade do objeto e a importância de seus efeitos mostra que a perfeição de um instrumento de exercício do poder não se mede por seu refinamento técnico, que seu poder não passa necessariamente por um gasto de energia ou ainda que a maior violência não é forçosamente a mais impressionante.
Mesmo que o arame farpado tenha abandonado amplamente a paisagem das democracias liberais – teríamos muita dificuldade em imaginá-lo cercando escritórios, supermercados e jardins, ou sendo utilizado pelas forças da ordem para bloquear ruas durante manifestações –, ele não desapareceu. Continua sendo utilizado em todos os países, mas não em qualquer lugar. Em volta das plantações e pastos, no campo; na cidade, acima dos muros das fábricas consideradas estratégicas, dos quartéis, das prisões e em algumas residências; ao longo das fronteiras tensas, nos campos de batalha…
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Nesses casos, o arame farpado funciona como um revelador das diferenças políticas. Por que é comum encontrá-lo sobre os muros das mansões ricas da África do Sul, ao passo que na França isso “não se faz”? Por que a polícia ou o exército podem facilmente parar os manifestantes desenrolando rolos de concertina1 nas ruas das Filipinas, enquanto os soldados franceses se protegem atrás de finos escudos de acrílico?
A resposta é, pelo menos, tripla. É preciso em primeiro lugar considerar o nível de violência das sociedades em questão. A fortificação das residências privadas relaciona-se com a brutalidade das desigualdades sociais, que ela inclusive contribui para piorar. O nível de sensibilidade à violência sofrida e percebida deve também ser levado em conta. Por fim, a variabilidade geográfica da força simbólica dos instrumentos utilizados: a percepção do arame farpado não é a mesma na Europa, na China e na África, em particular porque existe uma relação diferente com os objetos históricos que o arame farpado simboliza – na Europa, os campos de concentração, o genocídio, a guerra.
Esses três fatores desenham, finalmente, uma geografia política do arame farpado que também é uma cartografia dos grandes tipos de governo que coexistem no mundo – que não corresponde, em absoluto, aos recortes políticos mais convencionais (democracia versus ditadura). A resposta à questão “arame farpado ou não?” é um indicador bem confiável da tecnologia política e do tipo de relações entre governantes e governados.
Criar jardins de sonho
No Ocidente, o arame farpado simboliza a opressão, com relação às suas utilizações históricas catastróficas. Assim, “as cercas, os fios de arame farpado, as barragens, as forcas, as câmaras de gás e os fornos crematórios” do campo de concentração e exterminação de Auschwitz-Birkenau estão inscritos na lista do patrimônio mundial como o “símbolo da crueldade do homem contra o homem no século XX”.2 De modo significativo, no logotipo da Anistia Internacional, associação fundada no Reino Unido para combater a prisão e a tortura, figura uma vela enrolada num fio de arame farpado. Há que se notar que, por outro lado, a conotação negativa pode ser invertida quando se trata de destruir o dispositivo. Em 1989, a Hungria decidiu dar um passo significativo em direção ao Ocidente: “Num gesto simbólico, [o ministro das Relações Exteriores] cortou, com seu colega austríaco, os fios de arame farpado que marcavam a existência da cortina de ferro entre a Áustria e a Hungria”.3
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A forte carga simbólica do arame farpado fez dele um instrumento ainda mais custoso politicamente por existir uma sensibilidade exacerbada à violência e um desejo de imunidade dos corpos, opiniões e afetos. Noli me tangere [Que ninguém me toque!], diz a expressão latina. “Nas sociedades ocidentais”, escreve o filósofo Alain Brossat, “o crescimento do paradigma imunitário tende a se desenvolver em verdadeira fobia do toque, do contato.”4 Nesse contexto, o arame farpado representa uma maneira intolerável de repartir os corpos no espaço. O risco de sofrer o contato cortante de suas pontas ou de suas lâminas, assim como a obrigação de suportar sua vista parecem inaceitáveis.
No entanto, até mesmo nos espaços onde o arame farpado é cada vez mais difícil de ser utilizado as delimitações não desaparecem: elas são apenas mais discretas, suavizadas. Pois existe um jogo de oposição entre, de um lado, as táticas de eufemização da violência espacial que necessitam da ausência de instrumentos agressivos como o arame farpado e, por outro lado, a persistência de táticas dissuasivas que se apoiem sobre uma brutalidade visível.
A eufemização é a princípio uma tática de discurso pela qual se substitui um termo por outro que diz indiretamente a mesma coisa. É assim que as fronteiras militarizadas se tornam “zonas desmilitarizadas”, “zonas tampão” ou “barreiras de segurança”. Mas, longe de ser apenas um linguajar, a eufemização também é estética, procedimental, tecnológica, arquitetônica, geográfica. Tomemos como exemplo as prisões para menores construídas nesses últimos anos: do lado de fora, indica o ministério da Justiça, “a imagem carcerária é voluntariamente atenuada por um tratamento arquitetônico adaptado que garanta uma melhor integração ao ambiente”.5 A violência espacial se exerce, mas economizando o custo político de seu exercício direto e sem maquiagem.
Daí a fascinação atual, ao mesmo tempo anedótica e sintomática, pela cerca vegetal. Uma empresa francesa, Sinnoveg, patenteou em 2005 o conceito de “trepadeira defensiva trançada natural”. “Uma inovação completamente ecológica, decorativa e instransponível”, vangloria-se o panfleto publicitário da empresa. Graças a uma escolha de essências vegetais com espinhos particularmente agressivos, esse novo tipo de barreira permite criar um obstáculo tão eficiente quanto uma cerca de arame farpado, por um custo parecido e com um retorno estético neutro, até mesmo agradável. Como se fosse arame farpado, com a vantagem de dar flores na primavera…
Assim, “os locais são protegidos sem para isso parecerem agressivos ou até mesmo chocantes vistos de fora”. Outra vantagem dessas trepadeiras: elas são adaptáveis e moduláveis. Ao lado das escolas, os vegetais que as compõem são desprovidos de espinhos; por outro lado, nas localidades “sensíveis”, as plantas servem para camuflar e reforçar as cercas clássicas de arames farpados e grades. Nessas combinações de flores e espinhos se entrelaçam a tática e a poesia do poder. Jardins de sonho seguros: “A Sinnoveg possui um savoir-fairepara criar jardins de sonho, de descanso em harmonia com a casa e seus mestres, oferecendo ao mesmo tempo o conforto da tranquilidade e da segurança por meio de um conceito decorativo e discreto de cerca vegetal intransponível, assim como vegetais excepcionais e únicos”.
Refinados meandros da violência política
Em outros casos, a eufemização está a serviço de um aumento da potência repulsiva. Ela consiste em camuflar os instrumentos violentos – a trepadeira florida que dissimula grades e rolos de arames farpados laminados – ou em mascarar a própria ação de delimitação a fim de capturar mais facilmente aqueles que a transgridem. Mesmo suavizadas, as demarcações do espaço não desaparecem: elas se modulam segundo as necessidades técnicas, em função de um equilíbrio sutil entre eficiência do instrumento utilizado e sua aceitabilidade simbólica. O arame farpado não vai desaparecer das sociedades ocidentais, mas em breve ele será utilizado somente para níveis de segurança muito elevados (prisões, campos militares…), em situações em que poderá ser escondido ou ainda em locais afastados, pouco habitados. Nas cidades modernas, a eficiência e a discrição das delimitações são obtidas preferencialmente por meios tecnológicos virtualizados: câmeras, portões eletrônicos, sensores…
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A carga simbólica negativa e inconsciente do arame farpado pode agir como um instrumento de dissuasão, seguindo o cálculo – político e pragmático – que decide por sua utilização. Assim, o bairro de New Willington, na periferia considerada perigosa de Compton, no sul de Los Angeles, foi cercado para colocar um fim aos enfrentamentos entre gangues. Ali há de tudo: arame farpado, grades com ponta de lança, barreiras, desvios, guaritas, guardas. “As conotações militares da arquitetura desse dispositivo de filtragem não são suavizadas. Ao contrário, essa estética defensiva torna visíveis a segurança e o controle que foram reencontrados nessa comunidade.”6
O aspecto agressivo da delimitação serve aqui para prevenir as tentativas de transposição ao mesmo tempo que produz uma diferença hierárquica entre dois espaços e duas populações. O interior é valorizado (principalmente em termos imobiliários) pela aparência chamativa da segurança, ao mesmo tempo que o exterior é desvalorizado e seus habitantes são designados como indesejáveis. Em outro local, em contrapartida, num município fechado da Califórnia, reservado a moradores com mais de 55 anos, a agressividade da cerca serve essencialmente para tranquilizar os habitantes, sem repousar sobre uma verdadeira utilidade operacional: “Aqui, a aparência de segurança é mais importante do que a segurança efetiva”.7
Todas essas possibilidades de agenciamento dos instrumentos de delimitação do espaço desenham um leque estratégico de grande riqueza: multiplicação e reforço dos limites graças a uma suavização simbólica, mas também endurecimento da segregação graças à sua brutalidade, real ou espetacular. O objetivo das divisões do espaço hoje não é binário: não se trata de uma “grande reclusão” da qual o arame farpado e a multiplicação das fronteiras blindadas seriam o sintoma, tampouco de uma simples liberação da circulação dos fluxos em razão da utilização de tecnologias virtuais.
O objetivo reside em uma diversificação estratégica que permite todas as misturas, todas as articulações e todas as ambiguidades. Paradoxalmente, um instrumento como o arame farpado, sobre o qual poderíamos pensar que focaliza nossa atenção em objetivos arcaicos da violência – a visibilidade de uma brutalidade intensa exercida sobre a carne –, nos leva, ao contrário, a deslocar nosso olhar. As formas atuais da violência política se reconhecem menos por sua intensidade manifesta do que por seus meandros refinados.
Oliver Razac é filósofo, é autor da Histoire politique du barbelé [História política do arame farpado], Flammarion, Paris, 2009.
1 “Concertina” porque esse arame farpado do tipo lâmina se desenrola como um acordeão.
2 Disponível em: .
3 Entrevista com Gÿula Horn, Le Monde, 5 nov.1999.
4 Alain Brossat, La démocratie immunitaire [A democracia imunitária], La Dispute, Paris, 2003.
5 “Les établissements pénitentiaires pour mineurs” [Os estabelecimentos penitenciários para menores], Ministère de la Justice, Paris, 31 jan. 2005.
6 Gérard Billard, Jacques Chevalier e François Madoré, Ville fermée, ville surveillée. La sécurisation des espaces résidentiels en France et en Amérique du Nord [Cidade fechada, cidade vigiada. A segurança dos espaços residenciais na França e na América do Norte], Presses Universitaires de Rennes, 2005.
7 Ibidem.

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