sexta-feira, 27 de setembro de 2013

O bolo cresceu, mas não foi dividido

Revista SUR, da Conectas, mostra que crescimento econômico por si só não garante direitos na África do Sul

Conectas
A escassez de recursos tem sido, há muito tempo, utilizada como pretexto por parte de governos de países em desenvolvimento para justificar sua impossibilidade de garantir acesso universal a direitos básicos como saúde, habitação e educação. No Brasil dos anos 1970, o raciocínio era traduzido pela máxima “é preciso fazer o bolo crescer, para depois reparti-lo”. Três décadas depois, o bolo está bem maior, mas ainda não foi repartido igualitariamente, e grupos vulneráveis continuam em muitos casos sem acesso a saneamento básico, moradia, educação e saúde de qualidade.
A situação brasileira é semelhante à de outras potências emergentes. Na África do Sul, por exemplo, ao contrário das expectativas pós-Apartheid, o regime democrático, com um conjunto robusto de garantias constitucionais, não conseguiu universalizar o acesso a direitos básicos. Esse é o tema de artigo de Serges Alain Djoyou Kamga e Siyambonga Heleba, da Universidade de Joanesburgo, para a edição 17 da Revista SUR, publicada pela Conectas em 3 idiomas e distribuída para mais de 100 países.
“Tentamos avaliar e explorar por que o crescimento econômico, que é bem conhecido internacionalmente, não está se tornando uma realidade e se traduzindo em direitos humanos para as pessoas”, afirma Serges Kamga.
Caso Grootboom
Para Heleba, “não há melhor país para se estudar essa questão do que a África do Sul”, já que o país possui uma Constituição explicitamente garantidora de direitos econômicos e sociais e um ambiente jurídico favorável à defesa desses direitos. “Ao longo dos anos, os tribunais têm sido muito sensíveis aos direitos contidos na Constituição”, aponta Heleba. Ele lembra o caso Grootboom como exemplo da atuação do Poder Judiciário para garantir a implementação dos direitos socioeconômicos previstos na Constituição, como o direito à habitação.
Julgado pela Corte Constitucional da África do Sul no ano 2000, o caso Grootboom refere-se a um grupo de famílias pobres que, cansadas de esperar para serem contempladas em um programa de moradia popular, ocupou um campo esportivo da Cidade do Cabo, depois de expulsas de uma propriedade particular. A Corte decidiu que o programa de habitação do governo violava a Constituição, por não ser suficientemente abrangente, coordenado e flexível para concretizar o direito à habitação para os mais necessitados.
“Este caso é um dos principais exemplos do tipo de mudança que se pode ver em um país quando os tribunais são responsivos”, afirma Heleba.
Os tribunais sul-africanos também obrigaram o governo a fazer cumprir direitos de grupos vulneráveis em outros casos. Num deles, obrigaram o governo a fornecer um medicamento a mulheres grávidas HIV-positivas que impedia que transmitissem o vírus da Aids a seus bebês. Em outro, garantiu que residentes permanentes na África do Sul tivessem acesso à seguridade social.
Segundo os autores, contudo, os tribunais sul-africanos também têm se mantido passivos em muitos casos e virado às costas às suas obrigações constitucionais, recusando-se a garantir que o governo garanta o chamado “núcleo mínimo” de direitos econômicos e sociais contidos na Constituição.
Núcleo mínimo
O Comitê de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais da ONU reconhece que, já que o direito à saúde, à moradia, à educação e outros exigem recursos estatais para serem cumpridos, governos não são obrigados a garanti-los imediatamente de forma universal, mas precisam garantir sua “realização progressiva”. Há, contudo, segundo o Comitê, um “núcleo mínimo de obrigações” que países devem cumprir, tais como o direito à alimentação básica, à moradia e à educação básica.
“Para que um país possa atribuir à falta de recursos disponíveis seu fracasso em garantir pelo menos essas obrigações, precisa demonstrar que fez todos os esforços possíveis para usar todos os recursos à sua disposição para satisfazer, de forma prioritária, essas obrigações mínimas.”
Segundo Kamga e Heleba, contudo, os tribunais sul-africanos não têm exigido do governo o cumprimento dessas obrigações, alegando que, pela separação dos poderes, não podem decidir sobre questões que cabem ao Legislativo e ao Executivo, tais como alocação orçamentária. “Apesar de os tribunais serem bastante responsivos e terem gerado uma jurisprudência admirável na área de direitos sociais, também perderam oportunidades de garantir um impacto maior e poderiam ter expandido o acesso a esses direitos em casos importantes.”
Para os autores, para traduzir o crescimento econômico em acesso a direitos básicos, os tribunais precisam assumir seu papel de decidir se o governo ou o Parlamento deixaram de cumprir suas obrigações constitucionais e de “dar conteúdo aos direitos”. Caso haja preocupação com ingerência em outros Poderes, os tribunais podem adotar mecanismos de consulta a membros do Legislativo e do Executivo ou a especialistas, como ocorreu em casos na Colômbia, na Argentina e na Índia.
Outras medidas necessárias para garantir o núcleo mínimo de direitos econômicos e sociais, segundo o artigo, são o estabelecimento de mecanismos de participação para que grupos vulneráveis possam comunicar as suas necessidades ao governo e a independência de comissões constitucionais, para que seu trabalho de verificar se os direitos estão sendo cumpridos seja livre de interesses partidários e eleitorais.

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