sexta-feira, 27 de setembro de 2013

A vida num campo de refugiados sírios no Iraque


Milhares de famílias fugiram da Síria em meio ao conflito civil e buscaram abrigo no Iraque. A ANBA acompanhou um pouco do drama destas pessoas.


Erbil, Iraque – Na década passada milhares de iraquianos fugiram para a Síria com a invasão norte-americana e a guerra se seguiu. Agora este movimento tomou o sentido inverso e milhares de sírios buscam refúgio no Iraque para escapar do conflito civil que assola sua terra natal.
Alexandre Rocha/ANBA
Aziza (de costas) e Mohammed (sentado): família se reuniu no Iraque
É o caso da família de Mohammed Ali Azo e Aziza Hassan Yunes, da região de Hasaka, no nordeste da Síria, próxima à fronteira com o Iraque. Eles vivem atualmente no campo de refugiados de Kawergosk, instalado numa área rural nos arredores de Erbil, capital do Curdistão, no norte iraquiano. É um dos vários complexos organizados pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) na região.

“Antes do conflito tínhamos tudo, casa, terra, uma boa vida, graças a Deus, mas depois um serviço depois do outro foi acabando, eletricidade, água, tratamento médico”, disse Aziza à reportagem da ANBA, que visitou o campo no dia 24 de setembro. Ela fala curdo e o responsável por informações públicas do Acnur na região, Yousif Mahmood, fez a tradução.

Vítima de um derrame, Mohammed ficou sem acesso aos medicamentos que necessita. Além disso, a situação de segurança se deteriorou na região curda da Síria. “Ocorreram muitos problemas, a segurança estava mal, houve sequestros, assassinatos, pedidos de resgate, a situação ficou miserável”, afirmou a mulher.
Alexandre Rocha/ANBA
Campo de Kawergosk tem cerca de 14 mil pessoas
Como o filho, a nora e os netos já estavam do lado iraquiano da fronteira há cinco meses, o casal de agricultores decidiu sair de casa também. “Não pudemos continuar lá”, declarou Aziza. Os dois cruzaram a divisa no dia 18 de agosto.

Segundo Mahmood, o governo a região autônoma do Curdistão Iraquiano decidiu abrir as fronteiras com a Síria em 15 de agosto, e elas permaneceram abertas pelo menos até 21 de setembro, quando ocorreram eleições nas três províncias do Norte do Iraque: Dohuk, na divisa com a Síria, Suleimaniyah, na fronteira com o Irã, e Erbil.

“A maioria dos refugiados [na região] são curdos da Síria”, declarou Mahmood. “Além da situação na Síria [como um todo], havia também choques entre os curdos de lá, então as pessoas vieram em grandes números e continuam a vir”, acrescentou.

O número de refugiados no Curdistão Iraquiano é de aproximadamente 220 mil, sendo que a quantidade estimada de pessoas que chegaram após 15 de agosto é de 60 mil. Nem todas vão para os acampamentos, há quem se hospede, por exemplo, em casas de familiares.
Alexandre Rocha/ANBA
Segurança em volta do acampamento é pesada
Aziza contou que ela e seu marido cruzaram a fronteira junto com “milhares de pessoas” e foram recebidos do lado iraquiano pelos “peshmerga”, como é conhecida a milícia que defende os curdos há quase um século, hoje em boa parte integrada ao contingente da força de segurança oficial do Governo Regional do Curdistão, a Zervani. O Acnur também estava lá.

“Colocaram-nos em ônibus e distribuíram [pelos acampamentos]”, contou Aziza. O grupo dela chegou a Kawergosk durante a madrugada e o campo ainda estava sendo montado, mas na manhã do mesmo dia os refugiados puderam ocupar suas barracas.

As tendas fornecidas pelo Acnur foram armadas por soldados da Zervani numa área cedida pelo governo local. O governo é responsável também pela administração direta do campo e pela segurança. A gleba está cercada por colinas onde foram construídas casamatas, ocupadas por soldados armados.

Pressões
Alexandre Rocha/ANBA
Menino sob placa que anuncia a abertura de escolas
“Os campos foram estabelecidos da noite para o dia, nós não poderíamos ter feito [esse trabalho] sem a ajuda do governo, a resposta tem sido ótima, do governo e do povo do Curdistão”, declarou Mahmood. Ele disse, porém, que a migração de tanta gente num período curto gera pressões sociais e econômicas. “Apesar da resposta positiva, das campanhas de doações, os recursos são limitados, é um desafio para a sociedade e para o governo, e há pressão sobre os serviços básicos”, resaltou.

O funcionário do Acnur disse que a questão dos refugiados na região recebe menos atenção do que o fluxo de sírios para o Líbano, Turquia e Jordânia. “Agora estamos pedindo maior apoio da comunidade internacional para lidar com essa questão”, afirmou.

Sentados na frente de sua barraca, ao lado de parentes e amigos, Aziza e Mohammed contaram, por exemplo, que ainda não conseguiram encontrar os medicamentos de que ele precisa. “Mas comparando com o que ocorre na Síria, nós temos uma vida, é difícil, estamos preocupados com nossos parentes que ficaram naquele lugar perigoso, mas estamos felizes, está bom, temos uma tenda, eletricidade, gás, comida, não tem do que reclamar”, declarou a mulher.
Alexandre Rocha/ANBA
Refugiados pegam água em reservatório
Os refugiados têm apoio de outras agências da ONU e de organizações governamentais. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), por exemplo, apoia na educação; o Programa Mundial de Alimentos (PMA), na alimentação; a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a ONG Médicos sem Fronteiras, em questões médicas; a Organização Internacional para as Migrações (OIM), do movimento de pessoas; e por aí vai.

As entidades contam também com a ajuda de voluntários locais e internacionais. É o caso do brasileiro Marcelo Viana, diretor de marketing da Iridium Solutions, uma empresa de tecnologias da informação sediada em Erbil. Ele contou que ajudou uma ONG da região a distribuir pequenos fogões para as famílias em um dos campos próximos à capital do Curdistão. “O voluntariado vale à pena, se a gente pode ajudar de alguma forma, fico feliz”, disse.
Alexandre Rocha/ANBA
Mercado improvisado no local
Viana acrescentou que a empresa em que trabalha tem um projeto de montar um laboratório de informática no campo de Domiz, o maior da região com aproximadamente 45 mil pessoas, na província de Dohuk. “Antes [da instalação de acampamentos] muitos refugiados estavam nas ruas pedindo esmola”, afirmou ele.
Segundo Mahmood, os sírios são livres para ir e vir e muitos arrumam empregos nas cidades. “Aqui há uma demanda positiva por mão de obra, e os sírios podem preencher este vazio”, destacou. O Curdistão do Iraque goza de estabilidade e segurança, ao contrário de outras partes do país, e de uma economia próspera.

A atividade econômica ocorre também dentro dos campos. Em Kawergosk, vários refugiados adquirem mercadorias na cidade e revendem no acampamento, em vendas improvisadas sob tendas.
A área
Alexandre Rocha/ANBA
Crianças brincam com pipa
O campo ocupa uma vasta área, coberta por barracas brancas tornadas bege pela areia acumulada e que parece estar permanentemente em suspensão no clima quente e seco. As tendas têm ar-condicionado. Pode parecer um luxo, mas é difícil imaginar que alguém conseguiria sobreviver debaixo de lonas sob o sol inclemente do Iraque. A área é ocupada por cerca de 14 mil pessoas pobres.

À primeira vista, o local pode lembrar um acampamento do Movimento dos Sem Terra (MST) no Brasil, ou um conjunto de abrigos improvisados para desabrigados por algum desastre natural. Mas não é, logo se vê que a disposição das tendas é organizada em ruas, alamedas e pequenas quadras que reúnem integrantes de uma mesma família. Há banheiros pré-fabricados e caixas d’água espalhadas por toda a extensão da área. Isso não impede, porém, que em algumas partes haja mau cheiro.
Alexandre Rocha/ANBA
Coração desenhado na colina com o nome de cidade síria
É impressionante o número de crianças, que correm por todos os lados, brincando com pipas, ou qualquer coisa que encontram pelo caminho, e também de mulheres. Enquanto a reportagem da ANBA esteve sentada em frente à tenda de Aziza e Mohammed, os netos do casal corriam de um lado para o outro, curiosos com os visitantes.

Em uma das colinas que rodeiam o campo, alguém desenhou com pedras um grande coração e escreveu “Qamshlih” (se diz “Camchló”), cidade síria de onde vieram muitos dos refugiados. “Se a situação melhorar na Síria nós vamos voltar, temos nossa casa, mas não sabemos como vai ficar”, afirmou Aziza.

Na hora de ir embora, um momento de tensão. A reportagem tirava fotos na entrada do campo quando foi abordada por três soldados. Um deles começou a puxar o celular e a câmera e todos a dizer uma série de coisas em curdo. Embora sem entender o idioma, ficou claro que eles não queriam ser fotografados. Não tinham sido, e ao constatarem que não estavam nas imagens, despediram-se com cumprimentos.

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