quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Deus pode estar morto, mas o sistema está vivo


Deus pode estar morto, mas o sistema está vivo

Ficou claro para a população brasileira que, para as associações médicas, o mais importante para qualquer comunidade é que, antes dos médicos, elas contem com aparelhos de Raios-X. Sob este aspecto, o lobby escafedeu-se.

A se crer na mitologia helênica, Júpiter tinha de se valer de um mortal, Tirésias, para saber o futuro. A onisciência, um dos atributos fundamentais do Deus judaico-cristão-islâmico, não era bem do repertório do Pai dos deuses. Em miúdos, talvez fosse essa uma das razões para a existência de tantos livres pensadores na civilização helênica. Já para os cristãos da Renascença, mesmo para os cientistas, era quase impossível não crer em Deus. Como explicar a existência do mundo, se esse era problema? A "morte de Deus" de Nietzsche talvez se explicasse, então, pelo abandono da questão ontológica. Na mesma ordem em que passamos a nos despreocupar com Deus, saberíamos que dependemos de um sistema do qual não podemos fugir. Mesmo a presidenta Dilma, a "segunda mulher mais poderosa do mundo", conforme os americanos (que, capitalisticamente, medem o universo por números), dependeria menos de Deus do que de um sistema indefinível – que existe, mas que é difícil de determinar.

A presidenta Dilma, aliás, mais uma vez, poderia dizer algo a respeito. No recente confronto com o ministro Antonio Patriota, de Relações Exteriores, coube-lhe a palavra final sobre o assunto. Se ele não sabia, como Júpiter, que um de seus subordinados estava prestes a cometer uma tolice, como Júpiter, igualmente, ele teria de se responsabilizar pelo que, afinal, deveria saber. Mais uma gafe do Itamaraty, dirão os críticos que, por sua vez, sabem que servem a um sistema, que lhes reservam sanções, se não cumprirem suas obrigações de criticar. E se possível, de mentir. Não que o assunto não seja criticável. Investigado a fundo, o caso do embaixador brasileiro na Bolívia, talvez recomende uma instância psiquiátrica. Que o Itamaraty, por sua vez, não deve ter; pelo menos não na previsibilidade requerida. Se é que não foi o próprio sistema quem engendrou tudo. 

O sistema, porém, talvez seja o ponto nevrálgico. Ainda que não lhe coubesse a responsabilidade pelas manifestações de ruas do Brasil, que também lhe pegou de surpresa, num aspecto ele parece ter se saído a contento: logrou que à falta de um alvo bem determinado dos protestos, parte da culpa ficasse com a "segunda mulher mais poderosa do mundo". Resultado: queda na popularidade da presidenta. A isso, o sistema somou tudo o que podia. Já que a presidenta insistiu em que os problemas políticos advinham também das regras que os regem, haveria que combater a idéia "estapafúrdia"de uma reforma que atingisse, por tabela, o sistema e seus liames. Se o sistema se nutre do capital para manter seu poder sobre os políticos, há que movimentar seus grandes canais – a imprensa, a televisão, a opinião de alguns políticos, principalmente aos que fazem parte da base governista, mas , sobretudo, ou fundamentalmente, ao mundo jurídico. A depender dele, tudo permanecerá como está. A "Caixa Preta"como batizou a Justiça brasileira o ex-presidente Lula, é a Pandora sempre ameaçadora que num dado momento pode acabar com qualquer idéia ainda no seu nascedouro. 

No entanto, nem tudo pareceu correr a contento. Tanto Júpiter quanto o sistema têm, de vez em quando, que lidar contra o destino. É o que parece estar acontecendo no Brasil. Quando a proposta da reforma política se afigurava enterrada, eis que algumas instituições brasileiras, como a OAB, prometeram sair a campo para colher 1,5 milhão de assinaturas para obrigar o Congresso a considerar a hipótese de uma revisão constitucional a valer, ainda para o ano que vem. Ou seja, o que parecia uma impropriedade de uma mandatária francamente em decadência, emergiu como uma séria ameaça a um dos mandamentos do sistema. Não se duvide de que, neste meio tempo, o crescimento da popularidade da presidenta se deva também a isso. No fim das contas, a presidenta apresentou uma proposta concreta. 

Um dos mais candentes mandamentos do sistema, porém, e que parecia destinado às cinzas do esquecimento, foi o programa "Mais Médicos". Nunca talvez, em momento algum, ou "nunca dantes"(para não fugir ao bordão) o poderoso lobby das associações médicas se desmoralizou tanto quanto à falta de resposta para a pergunta formulada pelo ministro da Saúde, quando ele quis saber por que a falta de médicos em certos cafundós do Judas, seria melhor do que contar com médicos nos mesmos cafundós do Judas. Ficou claro para a população brasileira que, para as associações médicas, o mais importante para qualquer comunidade é que, antes dos médicos, elas contem com aparelhos de Raios-X. A lógica seria essa: primeiro os hospitais, depois, os médicos; ou, se quiserem, antes os remédios, e então os clínicos para receitá-los. 

Sob este aspecto, o lobby escafedeu-se. Sobraria, enfim, como soe acontecer com o destino – o fado que a tudo preside – a saber, a questão do dinheiro. Como gerir o programa? O Congresso , ao prover o governo dos fundos do pré-sal, induz a pensar que, no fim das contas, quem melhor se aveio foi mesmo, de novo, a presidenta.

Como na mitologia grega, contudo, não há um fim para esta história. As cenas deprimentes de jovens médicos a vaiarem seus colegas que, ao contrário deles, aceitam se enfurnar no interior do Brasil para salvar seus compatriota brasileiros, apenas adiam as coisas para um futuro, por enquanto previsível: não importa que façam o bem e cumpram as funções éticas dos médicos. Continuarão sendo hostilizados. O sistema a tudo provém. Assim, um dos maiores engodos da vida jurídica do País seguirá impávido, em frente, com o mensalão a gritar que não são precisos santos cristãos para a existência de mártires em qualquer momento da história brasileira. 

É em muito o que ficou da mitologia grega na sociedade cristã e Ocidental. Nem Júpiter podia interferir no fado. Substitua-se a palavra fado por sistema, e se tem exatamente o mesmo, com a realidade brasileira. Deus deve estar morto, como dizia Nietzsche, mas o sistema não. Esse continua sobranceira, alimentado sobejamente pelo próprio governo, que o sistema espera, um dia, poder desmontar.

Enio Squeff é artista plástico e jornalista.

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