sábado, 29 de junho de 2013

Brasil: soberania rifada para atender aos ditames da FIFA

Não concordo com a flexibilização de nossas leis para atender aos interesses de alguém que não seja o povo brasileiro”, opina Paulo Rogerio Lemos Melo de Menezes

Graziela Wolfart

“Com o apito inicial da Copa do Mundo no Brasil toda a esperança do povo brasileiro, depositada na seleção verde e amarela, será transformada em uma grande e apaixonada torcida pelo sucesso dos canarinhos tupiniquins, a ser materializado em muitos gols e vitórias, até o som do apito final. Porém, engana-se quem acredita tudo ser festa”. A reflexão crítica é do advogado Paulo Lemos, em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line. E ele explica sua posição: “Se não estiver atento para o início, meio e fim dessa copa eleitoral brasileira, sem a menor sombra de dúvidas, o povo poderá perder de goleada, para àqueles que querem fazer gol contra a pátria e se servirem dela (...). Então, não se pode deixar que as festividades inerentes à Copa do Mundo se prestem para dopar o povo, como se um verdadeiro ópio fosse. Mas, sim, o povo deve se ater à partida que verdadeiramente importa e fará a diferença perene e efetiva na vida das pessoas: a partida também verde e amarela; porém, político-eleitoral”. Ao ponderar sobre a questão da flexibilização das leis brasileiras em função da Copa do Mundo, Lemos é enfático: “o nosso problema não é o de carência de legislação. Hodiernamente, nosso maior fantasma é o do desrespeito inescrupuloso da legislação que já temos e que a duras penas foi conquistada pela luta do povo brasileiro, ao custo de sangue, suor, tortura, assassinatos e desaparecimentos”.
IHU On-Line - Qual é sua opinião sobre a realização do mundial de futebol no Brasil? O país está preparado, do ponto de vista da legislação, para receber um megaevento deste porte?
Paulo Lemos - Veja, não há dúvidas de que o futebol e a Copa do Mundo, principalmente, além da Copa das Confederações, são paixões nacionais que cativam e alegram parcela significativa do povo brasileiro. Assim como a iniciativa de Nelson Mandela, na África do Sul, logo após a apartheid, em sediar a terceira edição do campeonato mundial de rugby, em que os sul-africanos sagraram-se campeões contando com a entrega do troféu feita pelo mencionado líder para François Pienaar, penso que a intenção dos governantes de então e ainda de plantão não foram más. Penso que, entre outras variáveis discutíveis, acreditou-se que a realização destes megaeventos poderia não só ampliar a visibilidade do Brasil e aumentar sua credibilidade internacional, como também impulsionar o Estado e a sociedade a enfrentarem alguns gargalos estruturais que temos ainda no Brasil.
Ocorre que, seja por uma visão míope ou por descompromisso mesmo com o interesse público primário da sociedade, tanto o Governo (estadual e federal), assim como, lamentavelmente, parte da sociedade e a grande mídia, têm composto uma orquestra com uma música de uma nota só, abordando a questão da mobilidade urbana, da região central das capitais, é bom que se frise isto, e dos estádios, como sendo o nosso calcanhar de Aquiles e o legado que devemos herdar da realização destes megaeventos, custe o que custar nas demais áreas da vida e nas vidas que não estejam diretamente incluídas no plano dos grandes interesses do capital nacional e internacional que têm deixado as empreiteiras e políticos mais entusiasmados do que nunca.
Em nome disso, muitos direitos e garantias já consolidadas no ordenamento jurídico brasileiro, sobretudo na Constituição Federal da República, a exemplo do direito à moradia, saúde, cultura, desporto e lazer para todos, e não para uma elite detentora das condições materiais de garantirem assento nas cadeiras dos estádios, ao invés de nas ruas, como tem propagado a Coca-Cola, mas também em leis outras como as compiladas na CLT, tal como o limite máximo de horas extras a serem exigidas por dia e condições dignas de trabalho, simplesmente estão sendo, em muitos casos já denunciados pelos movimentos sociais, inobservados, sendo tratados não como postulados que estão acima da vontade voraz e faminta do “progresso”, e, sim, como bordões de um recital lírico.
Respondendo objetivamente à pergunta: o nosso problema não é o de carência de legislação. Hodiernamente, nosso maior fantasma é o do desrespeito inescrupuloso da legislação que já temos e que a duras penas foi conquistada pela luta do povo brasileiro, ao custo de sangue, suor, tortura, assassinatos e desaparecimentos.
IHU On-Line - Quais os desafios que se colocam diante da flexibilização das leis brasileiras em função dos megaeventos que se aproximam em nosso país?
Paulo Lemos - Este é um precedente muito perigoso e preocupante. Por mais que busquemos não ter uma posição radical, sem levar em consideração as circunstâncias da vida e do processo político e histórico que, às vezes, impõe situações que não estão completamente sobre nossa governabilidade e campo decisório, sou adepto da premissa de que, sobre questões fundamentais, como são os fundamentos da República Federativa do Brasil, especialmente os da dignidade da pessoa humana, da cidadania e o da soberania nacional, não há margem de negociação ou qualquer forma de renúncia. Isto, pelo simples fato de serem, como preconiza o artigo 1º da Carta Magna Federal, os fundamentos do Brasil. E se abaloarmos ou implodirmos os fundamentos, assim como tem ocorrido com alguns monumentos históricos, quiçá, seremos testemunhas do desmoronamento do projeto republicano e democrático optado em 1988 pelo constituinte.
Portanto, não concordo com a flexibilização de nossas leis para atender aos interesses de alguém que não seja o povo brasileiro.
Podemos alterar para avançar. Avançar nas ações sociais, de distribuição de riquezas, de erradicação da pobreza, de inclusão e emancipação. Agora, jamais para retroceder. Retroceder em acúmulo de riquezas, em se criar um quadro favorável para o aumento da corrupção e para a segregação social, em que os brasileiros mesmo, os candangos, os indígenas, os afro-descendentes, os pedreiros e ajudantes só poderão se aproximar dos jogos da Copa pela televisão, se não tiverem com as luzes cortadas, ante os altos valores praticados hoje pelas empresas, na maioria privadas, fornecedoras e “distribuidoras” de energia.
IHU On-Line - Como entender que o governo brasileiro ceda a exigências de um órgão como a FIFA?
Paulo Lemos – Quando da realização da Copa do Mundo na África do Sul, o neto de Mandela, Mandla, queixou-se publicamente da pressão que a entidade estava fazendo sobre a família para que Mandela estivesse na final, mesmo diante da tragédia ocorrida com sua neta dias antes: “Estamos sofrendo intensa pressão da Fifa pedindo que meu avô vá ao jogo. Mas a decisão é só dele. Depende de como ele acordar e de como se sentir pela manhã. Meu avô fará 92 anos na semana que vem, e o jogo acontecerá à noite. Eles querem que ele entregue o troféu ao campeão depois da partida, o que pode acontecer depois das 23 horas. Seria exigir muito dele.”
Portanto, não se trata de novidade alguma esta posição ditatorial da FIFA, principalmente com os países que pensa ela ser do terceiro mundo, da terceira divisão do campeonato político-econômico internacional.
É verdade que nos últimos dez anos o Brasil adotou uma postura de maior independência e mais credibilidade perante o mundo, ampliando os horizontes das relações diplomáticas e comerciais com países até então descriminados ou menosprezados pelos governos do período militar e da década de 1990, livrando-se da subserviência ampla e irrestrita aos EUA e ao FMI, além de ter reassumido o papel estatal de indutor do desenvolvimento nacional e de mediador entre a sociedade civil e a pressão constante do capital nacional e internacional.
Todavia, é com estranheza verificar que, mesmo tendo dado os passos de libertação democrática e afirmação de sua soberania, o Brasil esteja, por força de seus representantes políticos de âmbito federal, rifando sua soberania para atender aos ditames da FIFA. Ainda mais se levarmos em consideração que a FIFA só tem dado ordens, enquanto o pagamento da fatura tem sido feito, cem por cento, com o dinheiro do contribuinte brasileiro, que não poderá assistir aos jogos da Copa, presencialmente.
A FIFA pode até regulamentar os jogos e dirigir a Copa do Mundo, naturalmente. No entanto, nossa Constituição não atribuiu a ela o direito de fazê-los com a vida do nosso povo. Na verdade, a parágrafo único do artigo 1º é enfático em preconizar que o poder emana do povo e para ele deve ser exercido. Em momento algum observo o nome da FIFA neste preceito constitucional, bem como em nenhum outro.
IHU On-Line - Qual tem sido o papel, a importância e as principais demandas dos movimentos sociais e demais entidades e militantes atingidos pelas obras da Copa e outros megaeventos em Cuiabá?
Paulo Lemos - Mais uma vez, a sociedade civil organizada, a exemplo do Fórum de Direitos Humanos e da Terra de Mato Grosso, tem desempenhado um papel de imprescindível importância, tanto no monitoramento e fiscalização das ações e programas derivados da Copa do Mundo, quanto na denúncia da violação de inúmeros direitos humanos da sociedade mato-grossense, brasileira e internacional, em razão dos muitos imigrantes que estão vindo ou sendo trazidos para cá a fim de prestarem mão de obra barata para a realização das faraônicas obras que estão em andamento acelerado, por estarem demasiadamente atrasadas, como constatou o Tribunal de Contas.
Eu diria que muitos são os desafios e é bastante difícil delimitar os principais, pois em se tratando de direitos humanos todos são fundamentais, inalienáveis e vitais. Mas, com certeza, quatro das mais difíceis demandas que temos enfrentado são: a) desapropriação a toque de caixa e sem justa indenização de muitos cuiabanos; b) inobservância dos direitos trabalhistas e trabalho em condições degradantes de muitos trabalhadores, nas obras relacionadas à Copa do Mundo; c) concentração de investimentos em obras de mobilidade, em detrimento de áreas essenciais, como saúde, educação etc.; d) postura de inércia ou arbitrariedade com grupos de pessoas vulneráveis, como os dependentes químicos e os moradores de rua.
IHU On-Line - Como está sendo feito pela procuradoria estadual do Mato Grosso o trabalho de fiscalização das obras da Copa do Mundo, os casos de corrupção e os problemas relacionados à área social e ambiental?
Paulo Lemos - Tanto o Ministério Público Estadual quanto a Defensoria Pública Estadual disponibilizaram, ou melhor, designaram membros para atuarem exclusivamente nas questões referentes à Copa do Mundo em Cuiabá/MT. A diferença reside no foco de cada uma dessas instituições. Enquanto o Tribunal de Contas está monitorando o cumprimento das metas e prazos das obras, o Ministério Público tem zelado pela questão afeta à probidade da gestão dos recursos públicos e da tutela do meio-ambiente, ao passo que a Defensoria Pública tem curatelado e promovido os direitos sociais de grupos de pessoas atingidas pelas obras, como os das pessoas que estão em situação de risco de despejo de suas áreas e residências.
IHU On-Line - Quais as dificuldades que se apresentam, nesse sentido, em função da Proposta de Emenda Constitucional de número (PEC) 37? 
Paulo Lemos - Ainda nenhuma. Pois, como este projeto de emenda constitucional está em trâmite e não foi aprovado, sancionado e promulgado, o Ministério Público mantém a atribuição investigatória. Mesmo sendo Ouvidor-Geral da Defensoria Pública, e não do Ministério Público, defendo que a PEC 37 não seja aprovada e que o Ministério Público mantenha todas as atribuições e competência confiada a ele pela Constituição, com o fito de cumprir sua nobre função. Agora, é importante que o Ministério Público maneje esta atribuição de forma não seletiva. Que não seja uma espada de Dâmocles apenas sobre a cabeça das pessoas empobrecidas, historicamente exploradas e discriminadas da sociedade. Muito pelo contrário! Esta espada tem que ser desembainhada com mais frequência e menos flexibilidade em face dos barões do poder econômico e político que são proprietários da indústria da violência e pobreza no país, diante da corrupção material e de prioridades que praticam sem o menor escrúpulo, em prejuízo do interesse público primário da sociedade.
E na mesma toada que o Ministério Público tem proclamado a todos os ventos que não há problema algum em duas instituições cumularem atribuições análogas, no caso investigativas, seria muito bom que a Associação Nacional do Ministério Público desistisse da ADI que promoveu no STF para questionar a legitimidade da Defensoria Pública promover ação civil público, ante o argumento de que não se pode compartilhar esta atribuição. Ora, não se podem dar dois pesos para a mesma medida.
IHU On-Line - Gostaria de acrescentar mais algum comentário sobre o tema?
Paulo Lemos - Com o apito inicial da Copa do Mundo no Brasil toda a esperança do povo brasileiro, depositada na seleção verde e amarela, será transformada em uma grande e apaixonada torcida pelo sucesso dos canarinhos tupiniquins, a ser materializado em muitos gols e vitórias, até o som do apito final. Porém, engana-se quem acredita tudo ser festa.
O Brasil tem assistido, ou melhor, não tem visto isso pela televisão, pelo desinteresse em combater e vontade de viabilizar um projeto fascista-social, a limpeza étnica das ruas e bairros das grandes cidades. Está havendo um enérgico e brutal processo de desapropriação em massa de comunidades tradicionais e empobrecidas, de internações compulsórias dos drogaditos, sem esgotar as alternativas menos traumáticas e mais humanitárias. Sem falar no completo abandono e cruel extermínio da população que se encontra em desoladora situação de rua, ao invés de resgatá-la e devolver a ela a identidade e dignidade que suas vozes roucas e invisibilidade, extremamente visível, clamam dia e noite, debaixo de sol, molhados pela chuva, batendo os dentes de frio e tremendo de fome.
Portanto, mais do que obras faraônicas, VLT ou BRT, curiosas capas de chuva para um tempo sem chuva e muito sol, etc., há neste momento histórico a oportunidade de todos vestirem a camisa e entrarem em campo para influenciar a vida política, econômica e social do Brasil.
Não só no exercício dos direitos de votar e ser votado nas eleições que se aproximam no ano vindouro. Mas, também, na promoção e execução da cultura de auxílio e controle social desde já, em todas as ações e programas estatais.
E se não estiver atento para o início, meio e fim dessa copa eleitoral brasileira, sem a menor sombra de dúvidas, o povo poderá perder de goleada, para àqueles que querem fazer gol contra a pátria e se servirem dela.
Então, não se pode deixar que as festividades inerentes à Copa do Mundo se prestem para dopar o povo, como se um verdadeiro ópio fosse. Mas, sim, o povo deve se ater à partida que verdadeiramente importa e fará a diferença perene e efetiva na vida das pessoas: a partida também verde e amarela; porém, político-eleitoral.
Porquanto, há que se proclamar o dever cívico e cidadão de mostrar cartão vermelho para todas as atividades perpetradas desde já que têm violado uma miríade de direitos humanos e fundamentais de nossa gente, dizendo não à desapropriação sem justa indenização e inclusão social, ao genocídio e exclusão desumana da população moradora de rua, ao tratamento preconceituoso e criminalizador dos drogaditos, ao sucateamento dos hospitais e escolas.
A Copa passa e a vida fica ou não, dependendo de nossa posição, de inércia ou condescendência com os abusos e nulidades, que envergonham a pessoa de bem e de bom coração, ou de atuação em prol do bem-estar e do estar-bem da população, principalmente da parcela que mais carece de nossa compaixão e união.
Paulo Lemos é advogado, ouvidor-geral da Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso e presidente do Colégio de Ouvidorias das Defensorias Públicas do Brasil.

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