quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

A sucessão de Bento XVI e os desafios de uma Igreja em crise


DEBATE ABERTO

A sucessão de Bento XVI e os desafios de uma Igreja em crise

O reinado de Bento XVI termina como um dos maiores fracassos na história milenar do papado. Não bastarão explicações sobre os desígnios do Espírito Santo para a Igreja justificar a eleição de mais um papa conservador: será a melhor forma de indicar que mesmo instituições de dois mil anos podem, aos poucos, tornarem-se irrelevantes.

A reação mundial ao insólito pedido de renúncia do Papa Bento XVI, talvez desvele a real relação do Vaticano com o mundo atual. É de se acreditar que a Santa Sé esteja se ressentindo do que lhe era estranho até bem pouco: a divulgação seguida de alguns escândalos, que sempre foram mantidos em segredo, mostrou-se mais deletéria do que o imaginável. O Papa Pio XII, um homem a quem Joel Silveira, que o entrevistou, não hesitava em usar a palavra "medíocre" para defini-lo, só foi discutido a sério, em suas simpatias pelo fascismo e em sua indiferença criminosa pelo holocausto, quando Bento XVI tentou algumas manobras para canonizá-lo. 

Pode ter se valido de um procedimento comum ao longo dos dois mil anos da Igreja enquanto instituição: num quadro do espanhol Pedro Berruguete (1450-1504), o hoje consagrado aos altares, Santo Domingos, criador da ordem dos Dominicanos, aparece presidindo um auto-de-fé: os pretensos hereges se preparam para arder na fogueira aos olhos indiferentes do santo.

Haja homens a serem revistos em sua santidade consagrada pela Igreja. Incinerar pessoas vivas, seja sob que pretexto for, não pode passar incólume pela consciência humana, mesmo que se relevem outros tempos e outros costumes. O que, porém, parece ter pesado sobre a decisão do cardeal Joseph Ratzinger de renunciar ao papado, teria sido justamente a sua incapacidade de lidar com essa nova realidade. De um lado, o Papa pode ter renunciado para, literalmente, chacoalhar a própria Igreja. Com seu gesto extremo , ele tentaria desmontar uma estrutura que se mostrou muito mais resistente do que o poder imperial que se atribui ao papado. De outro, porém, e não necessariamente como gesto inconsciente, o cardeal pode ter entrado em desespero - o que dá na mesma. 

Parece, de fato, ter havido uma certa precipitação do colégio de Cardeais em eleger Joseph Ratzinger: era conhecida a sua relação com o Papa João Paulo II; ao suceder o cardeal Woytila, na função de Papa, a Igreja, à primeira vista, substituiu a criatura pelo criador. Em seu cargo como guardião da fé, no antigo Santo Ofício, Joseph Ratzinger fez o Papa polonês nomear cardeais à prova de qualquer reformismo à esquerda. O próprio conclave que o elegeu parece ter aceito firmemente que o capitalismo pós comunista, estaria acima da história como acreditou Francis Fukuyama e seus seguidores. Conjetura-se que o colégio de Cardeais partilhou a idéia absurda de que, com o fim do comunismo, o mundo teria chegado, finalmente, aos tempos da parúsia, com a segunda reencarnação de Cristo. Um erro até certo ponto estranho à Igreja. 

Nunca foi muito de sua tradição ceder aos tempos e aos fantasmas dos sistemas laicos, ou a algumas das idéias forças de muitas de suas próprias fantasias. A história do papado está, sem dúvida, recheada de exemplos de pontífices que cederam aos tempos e aos costumes. Júlio II, mecenas de Miguel Ângelo, co-autor da Capela Sistina (que, aliás, não existiria em sua magnificência, sem a sua insistência de contratar o grande artista para preencher seu teto e suas paredes com suas pinturas - Miguel Ângelo insistia em que queria ser só escultor; a pintura não o atraía de modo algum ), foi, em tudo, um homem de seu tempo. Inclusive por não hesitar em, eventualmente, despir a batina branca e entrar numa armadura para combater seus inimigos. Mas papas do tipo, foram exceções. Na ânsia de buscar seu lugar ao sol, ao longo dos séculos, a Igreja parece ter se pautado mais pela precaução do que pelos entusiasmos por vitórias temporais como foi com o comunismo soviético. 

João XXIII, por exemplo, foi eleito nessa esteira de previdência: o que ousou mais tarde, foi realmente um susto para o estamento - mas seu sucessor não imediato, João Paulo VI, um homem fechado, mas sensível às questões sociais, portou-se com a sobriedade que se lhe exigia. Com Joseph Ratzinger, não. Certamente não se livraria das denúncias contra a Igreja, que cumularam de escândalos a sua gestão - mas sua razzia contra os padres progressistas foi além da tolerância dos que se sentiram acuados com seus procedimentos. Foi um autêntico papa da era Bush - que não contava com o êxito da esquerda algures, inclusive no Brasil, em teoria, "maior país católico do mundo". 

Há que se perguntar, a propósito, que se Joseph Ratzinger tivesse tido êxito em sua tentativa indireta de eleger José Serra para a presidência do Brasil, se isso não lhe caberia como uma vitória, que o garantiria em seu posto. Calcula-se, com razão, que foram muitos os seus erros, como o que culminou com seu pedido de desculpas ao mundo islâmico. Com um cartel de tantas derrotas, muito dificilmente poderia enfrentar os autênticos mandões do Vaticano. 

Esse, aliás, o outro capítulo do reinado de Bento XVI. Seu decidido apoio a um autêntico impostor como Berlusconi, não lhe deve ter rendido poucos inimigos e adversários dentro e fora da Itália. Ao se engajar diretamente na política partidária, Joseph Ratzinger parece ter querido repetir o êxito de seu antecessor polonês. Frustrou-se em quase tudo, o que, no fim das contas, não fornece resposta alguma sobre o futuro. Contemos que o sucessor de Bento XVI seja ainda pautado pela Opus Dei: tudo ficará como antes no quartel de Abrantes.

Um caso à parte no imbroglio vaticano parece ter sido, de fato, a canonização do padre Josemaira Esquivá, criador da Opus Dei. Esquivá, um franquista notório, ferrenho defensor de governos de direita, com ou sem ditadura, desde que foi alçado aos altares como santo, causou uma profunda consternação entre os católicos progressistas. Num mundo em que a queda do socialismo soviético foi saudada como o triunfo da democracia, soa estranho que a Igreja tenha santificado um autêntico defensor do fascismo de Francisco Franco, o ex-ditador espanhol, um dos mais sanguinários que se seguiram aos confrontos que culminaram com a Segunda Guerra Mundial. 

Ficam as expectativas para a sucessão de Bento XVI, quiçá um dos maiores fracassos na história milenar do papado. Não importa muito talvez o que uma estudiosa vaticinou - que a Igreja terá de explicar como elevou Esquivá aos altares. Mas não bastarão explicações sobre os desígnios do Espírito Santo para a Igreja justificar a eleição de mais um papa conservador: será a melhor forma de indicar que mesmo instituições de dois mil anos podem, aos poucos, tornarem-se irrelevantes.

Enio Squeff é artista plástico e jornalista.

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