terça-feira, 27 de novembro de 2012

O furacão Sandy e as escolhas da humanidade


Diante da mudança climática e seus desastres, restam duas opções: privatização radical, como nos EUA, ou multiplicar os bens comuns

Naomi Klein
Destruição causada pelo furacão Sandy em Breezy Point, Nova York
Menos de três dias depois de a tempestade Sandy chegar à terra firme na costa leste dos Estados Unidos, Iain Murray do Competitive Enterprise Institute culpou a resistência dos nova-iorquinos às mega-lojas como causa da miséria que eles estavam prestes a enfrentar. Escrevendo na Forbes.com[1], ele explicou que a recusa da cidade em adotar o Walmart provavelmente vai tornar a recuperação urbana muito mais difícil. “As pequenas lojas simplesmente não podem fazer o que podem as grandes lojas nessas circunstâncias”, escreveu ele. Também alertou que, se o ritmo de reconstrução acabar por ser lento (como tantas vezes é), a culpa será das “leis sindicais como a Lei David-Bacon[2]“, referindo-se à norma que exige que os trabalhos em projetos de obras públicos sejam baseados não no salário mínimo, mas no salário prevalecente na região.
No mesmo dia, Frank Rapoport, um advogado que representa construtoras bilionárias e vários empreiteiros imobiliários, escreveu sugerindo que muitos dos projetos públicos de obras não devem ser integralmente públicos. Em vez disso, sem dinheiro, os governos deveriam recorrer às parcerias público-privadas, conhecidas como “P3″ nos Estados Unidos. Isso significa estradas, pontes e túneis sendo reconstruídos por empresas privadas, através das quais, por exemplo, poderiam construir pedágios e manter os lucros. Esses acordos não são autorizados em Nova York ou Nova Jersey, mas Rapoport acredita que isso pode mudar. “Em Nova York e Nova Jersey, algumas das pontes atingidas precisam de substituição estrutural, e isso será muito caro”, disse ele. “O governo pode muito bem não ter o dinheiro para construí-las de maneira certa. E aí você se interessa por um P3″.
O prêmio para o capitalismo de desastre mais vergonhoso, no entanto, certamente vai para o economista de direita Russel S. Sobel, que publicou no fórum online do New York Times. Ele sugeriu que, nas áreas mais atingidas, a Agência Federal de Gerenciamento de Emergência (Fema) deveria criar “zonas de livre comércio – em que todas as normas, licenciamentos e impostos estariam suspensos”. Esta empresa “livre-para-tudo” poderia, aparentemente, “fornecer melhor os bens e serviços necessários às vítimas”.
Sim, é isso mesmo: está catástrofe, muito provavelmente criada pela mudança climática — uma crise nascida do fracasso colossal em criar regras capazes de evitar que corporações tratem a atmosfera como seu esgoto a céu aberto – é apenas uma oportunidade a mais para mais desregulamentações. E o fato de esta tempestade demonstrar que as pessoas pobres e a classe trabalhadora são muito mais vulneráveis à crise climática sugere a alguns que este é o momento certo para retirar, dessas pessoas, as poucas proteções trabalhistas que ainda as restam, bem como promover a privatização de parcos serviços públicos disponíveis para elas. E sobretudo, mesmo diante do fato de ser uma crise extraordinariamente cara e que nasceu da ganância corporativa, distribuir isenções fiscais para as corporações.
A enxurrada de tentativas de usar o poder destrutivo da tempestade Sandy como forma de ganhar dinheiro é apenas o mais recente capítulo na história daquilo que, há muito tempo, eu chamei de Doutrina do Choque. E é o mais ínfimo sinal das maneiras por meio das quais grandes corporações estão buscando colher enormes lucros do caos climático.
Um exemplo: entre 2008 e 2010, foram protocoladas pelo menos 261 novas patentes de sementes supostamente capazes de resistir a condições extremas como secas e inundações. Dessas patentes, perto de 80% são controladas por apenas seis gigantes do agronegócio, incluindo a Monstanto e a Syngenta. Tendo a história como professora, sabemos que pequenos agricultores se endividarão tentando comprar essas miraculosas sementes, e que muitos vão perder suas terras.
Em novembro de 2010, a The Economist publicou reportagem de capa que fornecia um modelo útil sobre como a mudança do clima poderia servir de pretexto para a última grande ocupação fundiária, uma última limpeza colonial das florestas, fazendas e costas por um punhado de multinacionais. Os editores explicavam que o stress causado pelas secas e pelo calor são uma ameaça para os agricultores e que, apenas os “grandes jogadores” poderiam sobreviver à turbulência. Sustentava ainda que “o abandono da terra poderia ser o caminho que muitos agricultores escolheriam para se adaptar”. A mesma mensagem era dirigida para os pescadores que ocupam terrenos valiosos de frente para o mar: não seria muito mais seguro, dada a elevação dos mares e tudo mais, se se juntassem a seus colegas agricultores, nas favelas urbanas? “Proteger uma única cidade de enchentes é mais fácil do que proteger a mesma população espalhada ao longo de uma costa de vilas de pescadores”
Mas, você pode se perguntar, não há um problema de desemprego na maioria dessas cidades? Nada que uma pequena “reforma do mercado de trabalho” e o livre comércio não possam consertar. Além disso, as cidades, eles explicam, têm “estratégias sociais, formais e informais”. Tenho certeza que isso significa que as pessoas cujas “estratégias sociais” são usadas para conseguir sua própria comida, agora poderão vender canetas quebradas em cruzamentos, ou talvez traficar drogas. Ninguém explica que estratégia social pode-se adotar quando os ventos de uma supertempestade uivam através de favelas precárias.
Por muito tempo, a mudança climática foi tratada por ambientalistas como um grande equalizador, uma questão que afetava a todos, sendo eles ricos ou pobres. Eles falharam em explicar as inúmeras formas pelas quais os super-ricos puderam se proteger dos efeitos menos deleitosos de um modelo econômico que os tornaram tão ricos. Nos últimos seis anos, temos visto nos Estados Unidos a emergência da privatização dos bombeiros, contratados por empresas de seguros para oferecer um serviço “concierge” aos seus clientes mais ricos. Também vimos o nascimento da empresa de curta duração “HelpJet” – uma companhia aérea na Flórida, que oferecia serviços de cinco estrelas para evacuações de zonas de furacões. Agora, pós-Sandy, agentes imobiliários de luxo estão prevendo que os geradores de energia serão um novo símbolo de status, junto com o conjunto cobertura/mansão.
Nós sabemos como os doutores do choque estão preparados para explorar a crise do clima, e olhando pro nosso passado, sabemos também como essa história termina. Mas aqui vem a verdadeira questão: e se essa crise abrisse espaço para um tipo diferente de oportunidade — uma alternativa que difundisse o poder nas mãos de muitos, ao invés de consolidá-lo entre poucos? Uma oportunidade que amplie radicalmente os bens comuns, ao invés de leiloá-lo em partes? Em suma, Sandy poderia ser o começo de um “Choque do Povo”?
Eu acho que sim. Conforme sublinhei ano passado[3], certas mudanças viáveis podem reduzir as emissões de CO². Elas incluem a relocalização de nossa economia (de modo que precisemos dos agricultores exatamente onde eles estão); vasta expansão e recriação da esfera pública, não apenas para conter a próxima tempestade, mas para evitar tempestades ainda piores no futuro; regulamentação da atuação das corporações, para reduzir sua interferência na política; reinvenção da economia, para que ela não defina o sucesso como a expansão infinita do consumo.
Assim como a “Grande Depressão” e a Segunda Guerra Mundial lançaram movimentos que reivindicavam como legado as redes de proteção social em todo o mundo industrializado, também as mudanças climáticas podem ser a ocasião histórica para a inauguração de uma próxima grande onda de transformações progressistas. Além disso, nenhum dos artifícios antidemocráticos que eu descrevi em A Doutrina do Choque são necessários nesse novo projeto. Ao invés de permitir que a crise climática impulsione políticas impopulares, nossa tarefa é nos apoderar dela para exigir um projeto verdadeiramente popular.
A reconstrução depois de Sandy permite abrir caminho para avaliar essas novas ideias. Ao contrário dos capitalistas de desastre, que usam a crise para terminar de destruir a democracia, uma recuperação popular (como muitos do movimento Occupy já estão exigindo) deve abraçar a possibilidade para novos processos democráticos, incluindo assembleias de bairros, para decidir como as comunidades duramente atingidas devem ser reconstruídas. O princípio fundamental deve ser o entendimento das ligações múltiplas entre a crise da desigualdade e a crise climática. Para começar, isso significa que a reconstrução não deve simplesmente objetivar a criação de empregos, mas de empregos que paguem, ao menos, o salário necessário para uma vida digna. Significa não apenas mais transporte público, mas de um transporte público com eficiência energética, de habitações a preços acessíveis ao longo das rotas de trânsito. Significa não apenas geração de energia mais “renovável”, mas o controle democrático da comunidade sobre esses projetos.
Mas, ao mesmo tempo em que aumentamos as alternativas, é preciso intensificar a luta contra as forças que fazem a crise climática tornar-se ainda pior. Isso significa manter-se de pé contra a expansão contínua do setor de combustíveis fósseis em territórios novos e de alto risco, seja explorando depósitos de óleo/alcatrão, fraturas hidráulicas, exportações de carvão para a China ou a perfuração do Ártico. Significa, também, reconhecer os limites da pressão política e ir atrás das empresas de combustíveis fósseis diretamente, como estamos fazendo com nosso grupo 350.org. Essas empresas têm mostrado que estão dispostas a queimar cinco vezes mais carbono do que as estimativas mais conservadoras afirmam ser compatíveis com um planeta habitável. Nós fizemos as contas, e simplesmente não podemos deixá-los prosseguir.
Esta crise poderá converter-se na oportunidade para um salto evolutivo, um reajuste holístico da nossa relação com a natureza. Ela também pode desaguar no maior desastre da história da humanidade, deixando o mundo ainda mais dividido entre vencedores e perdedores.
Quando escrevi A Doutrina do Choque, estava documentando crimes do passado. A boa notícia é que o crime atual ainda está sendo produzido, e impedi-lo continua a nosso alcance impedi-lo. Vamos ter certeza que, dessa vez, os mocinhos possam ganhar.
Naomi Klein é uma jornalista e ativista social canadense. Crítica do capitalismo, Naomi Klein vem ganhando notoriedade na imprensa internacional ao denunciar os crimes cometidos pelas grandes corporações em nome do capitalismo de livre mercado. No Brasil, publicou Sem Logo – A tirania das marcas em um planeta vendido e Cercas e Janelas – Na linha de frente do debate sobre a globalização, ambos pela editora Record, e A Doutrina do Choque – Ascensão do capitalismo de desastre pela Editora Nova Fronteira.

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