quarta-feira, 28 de novembro de 2012

O filme “brasileiro” de Pablo Trapero



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“Elefante Branco” poderia ter sido feito aqui.  E tem vantagem: não trata favela como cenário de bangue-bangue, nem com olhar hollywoodiano
Por José Gerado Couto*, do blog IMS
De tanto manifestarmos inveja do cinema argentino, Pablo Trapero resolveu fazer um filme “brasileiro”, ou antes, o filme que os brasileiros se esqueceram de fazer. Não que não façamos “filmes de favela”, mas os nossos, em geral, são bangue-bangues de mocinhos versus bandidos, ou de bandidos versus bandidos. Filmes de ação à americana, em que o primeiro plano é ocupado pelo crime, como se fosse isso o que constitui, em última instância, aquele mundo. Elefante branco é outra coisa.
Descontadas algumas diferenças de topografia, trocados os rostos de matriz indígena por outros mais afro, Elefante branco pareceria filmado numa favela do Rio ou de São Paulo. Mas é Buenos Aires – não a “europeia” Buenos Aires dos cafés e livrarias, mas a Buenos Aires escondida das villas e cortiços. Não por acaso, o bairro miserável onde se passa a ação do filme chama-se Ciudad Oculta, pois em torno dele foi construído um muro por ocasião da Copa do Mundo de 1978, para escondê-lo dos turistas e da imprensa internacional.
O que interessa aqui, a meu ver, são basicamente duas coisas: 1) por que via Trapero penetra nesse mundo escondido; 2) de que maneira o descreve.
A via de entrada é a assistência social. Padres e assistentes sociais que participam do trabalho comunitário nos conduzem pelo bairro oculto como Virgílio conduziu Dante pelos círculos do inferno. São indivíduos brancos, instruídos, de classe média, com os quais o grosso da plateia atual de cinema pode se identificar. Além do mais, são encarnados por atores conhecidos e carismáticos: o indefectível Ricardo Darin e o belga Jérémie Renier (dos filmes dos irmãos Dardene) como padres abnegados, Martina Gusman (de LeoneraAbutres etc.) como assistente social empenhada.
Labirinto em escombros
O retrato que o filme nos dá desse lugar é o de um labirinto sem saída, dominado por um gigantesco prédio em escombros, o elefante branco do título, que era para ter sido o maior hospital da América Latina e foi abandonado a meio caminho, como tantos edifícios de metrópoles do Terceiro Mundo, ainda em construção, mas já em ruínas.
O fato de ter em seu centro personagens movidos pelo humanitarismo e pela compaixão cristã não faz de Elefante branco um filme assistencialista ou de mensagem edificante. Muito pelo contrário: à medida que a narrativa avança, ficam cada vez mais claros os limites da ação humanitária num contexto social conflagrado, bem como as contradições da Igreja enquanto instituição e a omissão do Estado, que só entra na favela como força policial, para reprimir, espancar e matar (outra semelhança com o caso brasileiro).
Trapero gosta das tintas fortes, em termos dramáticos, e dos drásticos contrastes, em termos visuais. Seu filme começa com o close de uma cabeça (a de Darín) sendo examinada num aparelho da mais avançada tecnologia. Corta para a selva peruana, numa noite chuvosa, em que guerrilheiros (ou soldados) dizimam um lugarejo. A selva e a cidade, tecnologia de ponta e barbárie ancestral, sol e chuva, dia e noite, amor fraterno e ódio anárquico, antagonismos de classe, de etnia e de cultura: o cinema de Trapero é um cinema de atrito.
Algumas imagens são marcantes e perturbadoras. Exemplo: ao perceber que o jovem viciado em crack Monito (Federico Barga) fugiu do apartamento onde o mantinha protegido, o padre Julián (Darín) sai à janela para procurá-lo; o plano seguinte, bem aberto, mostra o garoto agarrado à parede do “elefante branco”, feito um arremedo canhestro do homem-aranha. Há algo de primevo e inexorável nessa imagem – um animal em busca da satisfação de desejos primários.
Outro ponto forte do filme é o modo documental, vibrante, como encena os confrontos entre moradores e a polícia, quase como se aquilo fosse uma reportagem de televisão. Aqui, para voltar ao começo do texto, o conflito central não é entre polícia e bandido, mas entre a comunidade unida, que tenta aos trancos melhorar sua condição de vida, e a tropa de choque que invade o seu espaço para perpetuar a injusta ordem vigente. Não é uma diferença pequena.
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*José Gerado Couto é crítico de cinema e tradutor. Publica suas criticas no blog do IMS.

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