domingo, 30 de setembro de 2012

A transformação do mundo do trabalho


Desde o período da Modernidade, o trabalho constitui uma precondição para a integração social dos sujeitos. No entanto, ele nem sempre assumiu a forma dominante que o caracterizou nas sociedades pós-revolucionárias, nas quais nem sempre manteve as mesmas características

Carlos Serna
Desde o período da Modernidade, o trabalho constitui uma precondição para a integração social dos sujeitos. No entanto, ele nem sempre assumiu a forma dominante que o caracterizou nas sociedades pós-revolucionárias, nas quais nem sempre manteve as mesmas características. Neste sentido, não podemos ignorar a complexa sequência que vai desde os artesãos ao trabalhador em situação precária e excluído do presente, passando pelo trabalho em domicílio, a manufatura, o proletariado e o assalariado1. Todas essas fases carregaram e carregam um significado social sobre o trabalho, um sentido subjetivo sobre ele, uma relação social e econômica singular.
A transformação do trabalho reflete, talvez como nenhuma outra instituição da modernidade, os processos políticos, econômicos e culturais que a contextualizam. É o resultado e, em ocasiões, também a causa, de mudanças nos direitos civis e políticos e nas formas de exercê-los e promovê-los; de transformações tecnológicas às vezes bruscas nos processos produtivos e no funcionamento dos mercados; de alterações nas capacidades e modalidades de interpretação individual e social sobre a realidade. O Estado tem desempenhado um papel de destaque em todo esse processo, e igualmente importante tem sido o papel dos sindicatos e dos movimentos sociais.
Existe certo consenso em entender que o emprego, forma dominante assumida pelo trabalho na modernidade ocidental e democrática, constitui um dos espaços privilegiados de disciplinamento da sociedade que, com o tempo, acabaria por se transformar em uma posição que daria acesso a direitos e condições de bem-estar. Trata-se sempre da ambivalência que é própria de muitos fenômenos e instituições da modernidade, algo que, neste caso, tem a ver com a tensão entre liberdade e igualdade, entre distribuição e acumulação, entre inclusão e exclusão.
Sem dúvida, a fase histórica na qual essas tensões se dissiparam foi aquela na qual o avanço do emprego assalariado permitiu o acesso generalizado a fontes de bem-estar material, cultural e social, e também ao progresso, ou seja, à mobilidade social. Foram os trinta gloriosos anos de alguns países da Europa Central (1945 a 1975), em que o desenvolvimento protegido da indústria, o pleno emprego e o aumento do consumo constituíram os eixos econômicos sobre os quais se estabeleceria a almejada paz social.
O desenvolvimento da sociedade de bem-estar assalariada foi, neste sentido, não apenas o resultado de acordos políticos do pós-guerra, mas também uma forma de concretização de velhas aspirações do socialismo e, em alguns casos, de princípios confessionais, concretização esta mediada pela disposição e generalização de uma inovação tecnológica, o seguro social. É sobre esses valores e ferramentas que se apoia, em boa medida, a intervenção do Estado, completando, dessa maneira, as políticas orientadas ao mercado interno anteriormente mencionadas.
Por último, cabe destacar o papel desempenhado neste processo pela mulher e por sua substituta, a escola. Tratava-se, claramente, de uma sociedade de pleno emprego com viés masculino, na qual a mulher permanecia reclusa à intimidade do lar. Seu papel, contudo, não foi passivo. Em grande parte, deve-se a ela e à escola as possibilidades reprodutivas da cultura assalariada. Nesses âmbitos – o lar e a escola – é que se exerce diariamente a transmissão de normas e valores, assim como de recursos cognitivos e sociais, que permitem ao indivíduo contar com o capital necessário para se integrar ao mercado de trabalho.
Em síntese, o mundo do trabalho resulta do entrelaçamento desse complexo de instituições e da generalização de uma subjetividade cujas crenças, práticas e representações geram a reprodução dos princípios e regras da classe social assalariada. Pode-se dizer que é sob as condições institucionais da sociedade de bem-estar que o trabalho assalariado atinge o seu máximo desdobramento, não apenas quanto a seu alcance populacional, mas quanto à sua legitimidade como instituição de eixo da ordem social.
Não obstante isso, a sociedade de bem-estar não constitui uma sociedade marcada pelo status quo; ao contrário, é em seu próprio seio que se tece sua transformação: às vezes em silêncio, por acumulação de efeitos; outras vezes a plenos pulmões, de maneira ativa.
Os diversos núcleos institucionais das sociedades assalariadas são progressivamente fragilizados. O desenvolvimento educacional e a subsequente incorporação da mulher ao mercado de trabalho constituem as mudanças mais significativas, ao tempo em que evidenciam os processos culturais de desprendimento em relação às instituições e de desenvolvimento do sujeito, que se estendem e se intensificam com a crise do salário como forma dominante de relação trabalhista2.
A esse respeito concordamos com as teorias que reconhecem no avanço da modernidade produtiva um dos responsáveis por essa crise. A ruptura do “arcaísmo protetor”3, e com ela do pleno emprego, é resultado das exigências competitivas da abertura de mercado e de processos produtivos cada vez mais dotados de bens de capital. A fortaleza tributária permitiu às sociedades mais desenvolvidas gerenciar e proteger, através de seguros, estas formas de instabilidade e/ou desemprego, cujo crescimento não teve a mesma velocidade do caso argentino. Contudo, é também a força institucional dessas sociedades e, portanto, a permanência de benefícios e de certas crenças sociais, que põe freios à introdução selvagem da tecnologia e à destruição sem limites do trabalho assalariado.
Esse modelo “ideal típico” configura um bom ponto de partida para estudarmos e interpretarmos a questão das transformações no mundo do trabalho, no caso argentino? Entendemos que a sociedade argentina foi, na realidade, uma sociedade de bem-estar cuja condição de integração social — a relação assalariada industrial — atingiu uma grande maioria da população. Suas características principais têm origem nas limitações ao exercício da cidadania que comportaram certas tendências à uniformidade político-ideológica; na constituição de um quase sindicalismo de Estado e na tensão entre clientelismo, meritocracia e universalismo na ação estatal. Outra característica típica é o prolongamento das proteções ao mercado interno, mais além do que sugeriam as transformações econômicas mundiais e as experiências de sociedades em situações semelhantes4.
A sociedade argentina representa um caso paradigmático. Sua morosa adaptação diante das mudanças do mercado mundial e a progressiva perda de legitimidade de instituições em processo de deterioração abriram as portas para as transformações “estruturais” dos anos noventa, as quais, por meio de modalidades irreflexivas, abruptas e injustas, levaram à ruína uma construção que, apesar de configurar o caráter limitado a que nos referimos, conjugava os esforços e aspirações de amplos setores e de várias gerações da sociedade argentina.
É nesse complexo contexto que tem início um extenso processo de transformação do mundo do trabalho. Esse processo, no entanto, não é simples nem unidirecional, já que pressupõe consequências e significados ambíguos e paradoxais. Entendemos que tais transformações tornaram o mundo do trabalho mais diversificado, formando uma gama de identidades que, de algum modo, estão relacionadas às duas grandes esferas do sistema social. A sistêmica, cuja “refundação” é proposta por certo neoprovidencialismo, e a esfera do mundo da vida, cujas experiências provêm das variadas formas de organização da economia social e solidária, muitas delas enraizadas nos denominados “novos movimentos sociais”.
DA HOMOGENEIDADE ASSALARIADA À DIVERSIDADE DE IDENTIDADES
Contrariamente ao postulado por muitos funcionalistas – que o sujeito reúne capacidades generalizadas para a construção de uma hermenêutica do si mesmo –, essas trajetórias não deixam de ter uma significação social por serem subjetivas; ao contrário, conferem “indicadores” relativos à transformação do mundo do trabalho, a suas modalidades competitivas e relacionais. Nessas trajetórias, adquirem especial relevância as crises geradas pela vinculação a outras pessoas, ao trabalho e ao mundo. São essas crises que constituem os pontos de partida para a reconstituição de identidades que se apoiam nas solidariedades próximas, nas reflexividades possíveis ou nas capacidades de atuação, com ênfases distintas conforme cada caso.
O espaço semiprivado, distrital, associativo e trabalhista desses processos de reconstituição preenche o vazio formado pela frequente fragilidade da confiança de nossos entrevistados nas instituições outrora típicas da sociedade assalariada: sindicatos, partidos políticos, governos etc. Apesar desse distanciamento em relação às instituições, os projetos sociais de diversas categorias, aos quais alguns dos trabalhadores de nossa amostra tiveram acesso a partir da eclosão da crise nos anos 2001-2002, representaram um apoio, por vezes muito relevante, a processos pessoais e grupais de mudança e desenvolvimento. Independente da limitação retributiva, do clientelismo e da corrupção que desacreditam tais projetos, o acesso a eles permitiu a mulheres e homens – a quem a tradição ou o desemprego havia restringido ao âmbito privado – desenvolver espaços de encontro com outros, de sociabilidade, mas também de trabalho.
Tal afirmação assume um significado particular no caso das mulheres, as quais encontraram nos projetos oficiais a possibilidade de sair do espaço doméstico ao qual estavam limitadas para se incorporar à sociabilidade do trabalho. Em muitos relatos, surge ou ressurge o sentimento de utilidade social, de reconhecimento por parte dos demais, de satisfação que o reencontro com o trabalho devolve a homens e mulheres. No caso das mulheres, o trabalho permite que muitas descubram uma sociabilidade que lhes facilita o acesso a novos recursos, diminuindo sua dependência e transformando as relações de gênero nas quais estão inseridas. É importante também insistir na articulação entre a trajetória pessoal, a participação trabalhista e as modalidades de integração, para discernir o caráter das identidades forjadas entre o relacional e o sistêmico.
Em primeiro lugar, não podemos sugerir que exista uma direção causal predeterminada, mas muito mais uma articulação complexa que faz com que o sistêmico ou o singular, conforme o caso, torne compreensível – caracterizável – o identitário. Assim, por exemplo, enquanto vemos muitos sujeitos inseridos em espaços sistêmicos lutando para desenvolver atividades ligadas ao mundo da vida, também observamos propostas vitais nas quais se articula a instrumentalidade própria da satisfação de necessidades, com valores através dos quais se persegue uma aspiração de transformação de tipo social.
Talvez seja possível generalizar a respeito do que foi mencionado, considerando que a cisão entre mundo da vida e sistema não pode ser entendida mecanicamente, mas deve ser concebida em pelo menos dois níveis. No espaço institucional, os relatos permitem observar uma espécie de interpenetração entre mundo da vida e sistema, protagonizada pelas pessoas, às vezes individualmente, e outras vezes inseridas em programas institucionais. Num segundo nível, o das práticas, as pessoas devem dar conta de responsabilidades e, por isso, devem seguir as normas prevalecentes, mas muitas decidem enfrentar ao mesmo tempo problemas éticos, políticos, econômicos que vivem ou observam em sua realidade concreta.
É nesse contexto que se faz relevante a perspectiva de síntese proposta como orientação epistemológica do nosso trabalho. A ação de mulheres e homens cujos relatos registramos, além dos grupos e coletivos por eles referidos, encontra nas instituições ainda vigentes – mas não dominantes – uma referência que assume, perante a crise de confiança nestas, o caráter frequente de oportunidade, ou seja, de espaço e conjuntura para a ação transformadora. É no sentido da articulação entre a fragilidade e/ou ausência de regras institucionais e os motivos (necessidades, aspirações) para a ação que os sujeitos encontram oportunidades para exercer sua condição de agentes.
Os processos de construção de políticas de vida, frequentes e de distinta “intensidade” na amostra teórica analisada, permitem observar que as reconstituições de identidades, apesar de receberem dos diversos indivíduos uma cota de influência considerável, têm nos recursos pessoais, em suas capacidades para discernir entre legados e aspirações próprias e na confiança em si mesmos uma fonte interna fundamental. Isto é, a precariedade das referências normativas induz à busca – muitas vezes sofrida e conflitante – de novas significações e sentidos. Essa busca às vezes é individual, enquanto outras vezes é associada a grupos, a coletivos ou a novos movimentos sociais. Enquanto experiência de certa continuidade, institui regras novas, de alcance limitado em certas ocasiões – familiar, grupal, distrital, organizacional –, mas cujo valor está relacionado com a autoridade do sujeito, no tocante à sua vida. É nesse momento que o institucional tende a reaparecer, sob a forma de experiências coletivas. Isso é evidente, por exemplo, quando os trabalhadores consultados, diante da ausência dos órgãos sindicais, decidem constituir seu próprio corpo de representantes, ou quando se associam para construir um espaço de trabalho autônomo, ou quando muitos deles se distanciam do trabalho enquanto eixo condutor de sua existência, revalorizando outros espaços vitais.
A análise realizada pretende também, como mencionamos anteriormente, evidenciar certas características do mundo do trabalho. Em primeiro lugar, cabe destacar a ausência de um modelo único de organização do trabalho, além da crescente presença de experiências adquiridas com base em modalidades relacionais, buscando na capacidade e na reflexividade dos trabalhadores a chave para o desenvolvimento dos processos de trabalho. Os relatos relacionados a essas transformações tendem a interpretar tais tendências – e nessa direção nos posicionamos também – como processos orientados a alcançar uma maior mudança cultural. Uma mudança que viabilize a passagem de uma prática confrontante – encorajada, logicamente, pelas condições econômicas e pelos ambientes políticos – para uma prática na qual exista um nível mínimo de acordo para amenizar o conflito. Uma mudança que afete especialmente a empresa, tornando-a responsável social e economicamente, sobretudo em relação a seus próprios trabalhadores.
Acreditamos, além do mais, que as modalidades relacional-corporativas de organização do trabalho encontram um espaço privilegiado de desenvolvimento no campo das experiências associativas da denominada economia social, das quais uma parte de nosso grupo de entrevistados participa. O caráter de sociedade com igualdade de direitos e obrigações para todos os integrantes dessas configurações organizacionais – em geral, cooperativas de trabalho –, a distribuição equitativa dos resultados econômicos e o difícil esforço para garantir o funcionamento democrático constituem características que favorecem um tipo de relação de trabalho que, ao mesmo tempo em que descarta a concorrência, também promove a confiança e a cooperação. Nessa modalidade de organização caberia também a participação de ONGs, quando se tratar de um trabalho apenas eventual ou mesmo marginal em relação às suas atividades principais.
Essas experiências, enquanto diferenciam-se do esquema contratual competitivo dominante no campo da organização do trabalho – e também da política laboral –, encontram nesse domínio o principal obstáculo para o seu êxito. A falta de regulamentação para as regras da concorrência e de reforma de leis trabalhistas impede o combate à precariedade e dificulta avançar no contrato por tempo indeterminado, condição indispensável de uma política que pretenda dar resposta relacional definitiva e eficaz ao vazio criado pela crise da classe assalariada. Isso constitui uma exigência não apenas dos trabalhadores produtores de bens materiais, mas também dos produtores de bens imateriais. Entretanto, não constitui um tema de agenda para a central sindical tradicional, nem para as agremiações que a integram.
Parece evidente, também, que o mundo do trabalho carece de condições de controle sobre os direitos dos trabalhadores em todos os níveis. Há, por parte do Estado, uma ação limitada e insuficiente sobre o trabalho clandestino, e o ator que deveria exercer um papel central nesse sentido não existe: os sindicatos tradicionais. Essas instituições – envelhecidas pela escandalosa continuidade de seus dirigentes – também não exercem seu papel em relação à proteção das comissões internas, muitas delas eleitas democraticamente e apoiadas pelos trabalhadores.
Conforme o axioma que nos foi relatado por um entrevistado, quando se é contratado e se obtém um aumento ou melhoria nas precárias condições de trabalho, o que se observa após isso é a demissão, o que demonstra a ausência, às vezes dramática, desse tipo de proteção.
A situação de precariedade e a exigência de trabalho excessiva a que estão sujeitos muitos trabalhadores – como é o caso, embora em diferente medida, dos telefonistas de call centers, dos fabricantes de tijolos e dos trabalhadores têxteis clandestinos, cuja situação não foi possível analisar nesta oportunidade – remete-nos à ideia de Hannah Arendt, segundo a qual há uma espécie de marginalização da vida pelo trabalho, que faz com que os trabalhadores, em alguns casos, sofram no corpo e na mente as condições que precisam enfrentar por necessidade. É frequente a situação em que muitos se reduzem à condição de meros corpos submetidos a duras condições de trabalho. Em outras palavras, o retrocesso à crua “necessidade” observada nos relatos de nossos entrevistados, que em termos de sociedade global chegam a 35 a 40% de nossa população em idade trabalhista, leva, devido ao mal-estar produzido, ao menosprezo da pessoa, desta conquista da modernidade democrática que é o cidadão. O exercício dos direitos é restrito, quando não vetado. O esforço dedicado e os riscos assumidos pelos que trabalham na construção e na instituição de representações sindicais não são seguidos por outros sindicatos e, na ocasião da realização deste trabalho de campo, não constituíam uma política eficaz das instituições do Estado.
Para finalizar estas observações, é importante mencionar a disputa intelectual em torno das identidades pós-fordistas. É evidente que os relatos que transcrevemos não nos permitem pensar em uma generalização das situações que afligem a uns e inspiram a outros, talvez de modo excessivo (ver seção I, primeira parte). Os depoimentos recolhidos parecem situar-se mais próximos a uma espécie de explosão das identidades, como resultado da complexa transformação do mundo do trabalho causada pela crise da identidade assalariada típica da sociedade industrial. De fato, o trabalho realizado sugere que as identidades são construídas em referência a situações contingentes e a experiências e memórias individuais, familiares e coletivas.
Dito de outro modo, as identidades que vemos florescer parecem assumir que qualquer interpretação e avaliação do estado das coisas passa primeiro, em nosso meio, pela reivindicação do exercício real dos direitos, isto é, pelo reconhecimento de aspirações e identidades não convencionais. Ou seja, parece não haver uma necessidade, ao menos geral, de “grandes relatos” ao estilo de Negri e Hardt, como tampouco um apego ao discurso apocalíptico, que defende a submissão generalizada às condições imperantes. As identidades que acreditamos ter identificado, além dos personagens que elas representam, parecem participar de aspirações muito concretas e de capacidades de atuação que são postas em movimento e que têm relação com transformações subjetivas, locais, reduzidas à sua área de alcance coletivo, mas também materializadas. Isso pode ser observado em todas as “regiões” de nossa geografia identitária, em diferentes contextos e valores, sob a influência de expectativas e perspectivas distintas. Acreditamos poder situar nossos entrevistados, guardadas as devidas proporções, mais próximos de uma sub-política, ou do que Guidens talvez chamasse de “políticas coletivas de vida”, do que de uma intelectualidade de massas que resulte num sujeito social e politicamente homogêneo, proprietário de uma autonomia drástica com respeito às instituições, um sujeito “capaz de comunismo”. Em nossa opinião, a afirmação anterior não parece constituir uma hipótese plausível no contexto atual. Ao contrário, tendemos a interpretar o presente em torno de uma diversidade de identidades que se move entre o mundo da vida e o sistema, no contexto de diferentes modalidades de organização do trabalho e das relações trabalhistas. Acreditamos que essa classe embrionária em construção vai mais além de um instrumentalismo puro que lentamente perde lugar para abrir caminho a uma possibilidade de ação orientada pela busca de transformações progressistas diante do estado das coisas. Esse horizonte ético parece exigir uma reflexividade e uma política de vida evidenciadas por nossa amostra de trabalhadores. Um horizonte em que a democracia seja construída sobre princípios e parâmetros igualitários, solidários e dialógicos. Uma democracia capaz de limitar ortodoxias, dogmas e fundamentalismo, capaz de reconhecer as iniciativas não corporativas da sociedade civil; uma democracia capaz de promover a economia plural e, portanto, a pluralidade de identidade dos trabalhadores.
* O texto deste Caderno é uma versão editada da introdução e das conclusões do livro de Carlos Serna, La transformación del trabajo, que apresenta a pesquisa realizada pelo autor em ocasião do Concurso de projetos para pesquisadores de nível superiorTransformaciones en el mundo del trabajo: efectos socio-económicos y culturales en América Latina y el Caribe, organizado pelo Programa Regional de Bolsas de Pesquisa do CLACSO com o apoio da Agência Sueca de Desenvolvimento Internacional (ASDI). O texto completo está disponível em www.biblioteca.clacso.edu.ar.
1 - Os termos assalariado/a e salariado/a – esta última categoria tal como definida por R. Castel (1997) – são utilizados indistintamente neste texto.
2 - Uma análise interessante de experiências neste campo pode ser encontrada na obra de Isla et al. (1999).
3 - “arcaísmo protetor”, ao regular a introdução de tecnologia, consagra a possibilidade de pleno emprego e de certa “equidade interna” na distribuição dos produtos do trabalho, mediante uma redistribuição da renda das posições mais qualificadas para as menos qualificadas, algo que gera, por sua vez, uma menor distância entre a base e o topo da pirâmide salarial.
4 - Apenas a predominância de uma lógica corporativista e prebendária, resultante de acordos entre o sindicalismo burocrático, certas camadas do empresariado nacional e setores das forças armadas, pode explicar a ausência de políticas que permitam a modernização progressiva do aparelho produtivo, claramente exigida já em meados da década de setenta.

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