segunda-feira, 25 de junho de 2012

O fantasma do autoritarismo latino-americano



Para os grupos dominantes da região (incluindo seus parceiros no exterior), a democracia parece ser mera conveniência e artifício retórico
Por Felipe Amin Filomeno | Imagem: Jogadores de Cartas, de Fernando Botero 
O processo de impeachment contra Presidente Fernando Lugo do Paraguai foi a mais recente aparição de um fantasma que assombra a América Latina desde sua colonização: o autoritarismo. Como ao longo da história, este fantasma tem como seus hospedeiros preferidos os partidos de direita, as elites econômicas, a classe média conservadora, e a grande mídia.
No início do século XIX, o fantasma autoritário sobreviveu a independência política latino-americana, quando governos coloniais foram substituídos por repúblicas oligárquicas (e uma monarquia, no caso do Brasil). Em meados do século XX, governos populistas-trabalhistas, como o de Getúlio Vargas no Brasil e o de Juan Perón na Argentina, tiveram uma relação ambígua com a democracia. Perón, por exemplo, podia ser autoritário, mas estendeu o direito de voto às mulheres e representava melhor as classes populares do que a oligarquia rural que antes dele governava a Argentina.
Esta ambiguidade foi depois substituída por uma quase completa supressão da democracia, quando os governos populistas-trabalhistas foram removidos por ditaduras militares conservadoras. Foi o caso, por exemplo, dos golpes militares contra João Goulart no Brasil, Salvador Allende no Chile, e Isabel Perón na Argentina. Diante de tais golpes, os Estados Unidos, como potência hemisférica e mundial, tiveram uma atuação que oscilou entre a conivência e o apoio direto.
A redemocratização ocorreu apenas nos anos 1980 e 1990, mas, mesmo nesta década, enfrentou ameaças iniciadas por governos neoliberais. No Brasil, por exemplo, lembremos das denúncias de compra de votos de parlamentares para aprovar a emenda constitucional da reeleição ou mesmo do abuso de medidas provisórias, através do qual o Presidente absorvia funções do Congresso Nacional – ambos ocorridos nas gestões democraticamente eleitas de Fernando Henrique Cardoso. Na Argentina de Menem e no Peru de Fujimori, podemos encontrar exemplos equivalentes.
A última onda de aparições do fantasma do autoritarismo emergiu após a eleição de governos de esquerda na América Latina, no início dos anos 2000. Não, não me refiro ao comportamento supostamente anti-democrático de líderes como Hugo Chávez na Venezuela, acusado de proto-ditador pela mídia conservadora e seus ouvintes beneficiários (elites econômicas) ou iludidos (classe média conservadora). Refiro-me sim às recentes tentativas (algumas efetivas) de golpes contra presidentes reformistas ou revolucionários que têm adotado políticas de redistribuição de riqueza e maior assertividade no cenário internacional.
Na Venezuela, Chávez foi removido temporariamente do poder em 2002, num golpe militar que contou com o apoio dos grandes grupos empresariais (Fedecámaras) e midiáticos. Na época, o governo dos Estados Unidos, embora negue apoio ao golpe em si, financiava organizações políticas que se opunham ao governo eleito de Chávez. Na Bolívia, em 2008, em meio a uma crise política associada a um processo constituinte, o presidente Evo Morales teve de se submeter a um referendo que decidiria se ele permaneceria ou não no poder. Morales teve seu mandato ratificado por mais de 67% dos votos válidos. Em 2009, o presidente de Honduras Manuel Zelaya foi destituído do cargo através de ação militar respaldada pelo Parlamento e pela Suprema Corte do país, numa transição que foi classificada como golpe de Estado pela comunidade internacional. Em 2010, foi a vez de Rafael Correa, presidente do Equador, que teve de superar uma revolta policial que pretendia destituí-lo do poder e, alegadamente, assassiná-lo. Agora, foi a vez do Paraguai. O mesmo Congresso Nacional que tem bloqueado a adesão da Venezuela como membro integral do Mercosul, acusando este país de não ser democrático, promoveu com o impeachment um golpe parlamentar disfarçado de julgamento, sem motivos razoáveis e sem respeito a direitos constitucionais. Atrás do golpe, a disputa entre uma oligarquia agrária e movimentos camponeses pela principal riqueza do país: a terra.
No Brasil, hoje, a possibilidade de um golpe de Estado é remota. Entre as razões para isto, estão o reformismo dos governos do Partido dos Trabalhadores (em contrário a um governo radical-revolucionário) e a maior solidez das instituições democráticas nacionais. Contribuem, também, as instituições regionais da América Latina, como a Unasul, que hoje atua na defesa da democracia paraguaia. Porém, mesmo no Brasil, há uma democracia que precisa ser estendida para mais além de seu aspecto formal e uma grande mídia que, infelizmente, é merecedora do cada vez mais popular adjetivo “PIG” – Partido da Imprensa Golpista.
Enfim, não é que a esquerda não possa ser autoritária (veja Fidel Castro), mas sim que, para os grupos dominantes da América Latina (incluindo seus parceiros no exterior), a democracia é mera conveniência e artifício retórico. Quando o presidente eleito é de direita, os grupos dominantes defendem a democracia de fato e em princípio. Quando o presidente eleito é de esquerda, os grupos dominantes defendem a democracia em princípio, mas apóiam de fato os golpes de Estado. O resultado são ciclos de autoritarismo e democracia na América Latina, associados às contradições de seu subdesenvolvimento e à posição subordinada que ocupa no sistema internacional.

*Felipe Amin Filomeno é doutor em Sociologia pela Universidade John Hopkins (EUA). Mantem um blog de atualização constante.
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